
A ‘Blue Marble’ foi a primeira fotografia da Terra como um todo — e a única já tirada por um ser humano. Cinquenta anos depois, novas imagens revelaram mudanças visíveis na superfície do planeta. A icônica Blue Marble ao lado de uma fotografia tirada 50 anos depois
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“Vou te falar”, afirmou o astronauta Harrison Schmitt enquanto a Apollo 17 se aproximava da Lua, “se alguma vez houve um pedaço de azul com aparência frágil no espaço, é a Terra neste momento”.
Em 7 de dezembro de 1972, uma quinta-feira, a humanidade teve sua primeira visão do nosso planeta como um todo. Naquele momento, foi tirada a foto batizada de Blue Marble (“Bola de gude azul”, em tradução livre) — uma imagem que mudou a maneira como vemos nosso mundo.
“Posso ver as luzes do sul da Califórnia, Bob”, disse Schmitt à sala de controle terrestre cerca de uma hora e meia após o início do voo. “O campo estelar do homem na Terra está competindo com o céu.”
A tripulação da Apollo 17 — o comandante Eugene Cernan, o piloto do módulo de comando Ronald Evans e o piloto do módulo lunar Harrison “Jack” Schmitt — observavam sua casa se distanciar, enquanto viajavam para o espaço na última missão tripulada à Lua.
Olhando para a Terra, Cernan comentou: “As nuvens parecem ser muito artísticas, muito pitorescas. Algumas giram no sentido horário… mas parecem ser… muito tênues, você pode… ver através destas nuvens a água azul abaixo”.
É uma imagem perene da beleza, mas também da vulnerabilidade do nosso planeta — à deriva na vastidão do Universo, que não abriga nenhum outro sinal de vida que tenhamos conseguido detectar até hoje.
Mas nosso planeta também é um planeta de grandes mudanças. Os movimentos tectônicos que deslocam as massas terrestres são lentos demais para que nossos olhos percebam. No entanto, outra força — a própria humanidade — vem remodelando nosso planeta em um ritmo que podemos ver. A urbanização, o desmatamento, a poluição e as emissões de gases de efeito estufa estão alterando a aparência da Terra.
Mas, afinal, como nosso planeta mudou nos últimos 50 anos, desde que esta imagem icônica foi tirada?
A tripulação se revezou com a câmera, tirando fotos durante a viagem à Lua
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Estas primeiras fotos da Terra foram tiradas pela tripulação, que se revezou no uso da câmera a bordo — uma Hasselblad 500 EL analógica manual, com filme Kodak de 70 mm —, fascinada pela visão da Terra vista do espaço.
“Todas as imagens capturadas com a Hasselblad são espetacularmente nítidas e brilhantes”, diz Jennifer Levasseur, curadora do Museu Aeroespacial do Instituto Smithsonian, em Washington DC, nos EUA.
Segundo ela, a câmera foi especialmente modificada para uso no espaço. Colas, lubrificantes, peças móveis e baterias poderiam causar problemas ou falhar quando expostas às condições extremas de calor e frio do espaço. Ela também ganhou um enorme botão quadrado de disparo do obturador, para que a tripulação pudesse tirar fotos enquanto usava seus trajes espaciais.
“A outra grande modificação foi a remoção da tela de visualização — porque era vidro extra”, conta Levasseur. Os astronautas “tiveram que aprender a tirar fotos sem poder ver nada”, diz ela. “Sem um visor, não é possível ver o que está sendo fotografado.”
Nuvens rodopiando sobre o azul do oceano, em imagem capturada pela tripulação da Apollo 17 após sua segunda passagem pela África, antes de seguir para a Lua
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Tirar fotos, acrescenta Levasseur, foi algo planejado meticulosamente e incluído no plano da missão. “Eles sabiam que os lançamentos anteriores não dariam a eles a (visão da) Terra como um todo, mas neste a Terra toda seria iluminada pela luz do Sol.”
Cerca de cinco horas e 20 minutos depois do início do voo, a tripulação teve o primeiro vislumbre de todo o planeta. Eles estavam começando a se preparar para dormir, entrando nos sacos de dormir. Era o primeiro momento de descanso que tinham desde o lançamento.
“Suponho que estamos vendo a Terra 100% completa como jamais veremos”, disse Cernan. “Bob, este é o tipo de visão que fica com você para sempre… Também não há cordas para mantê-la. Ela está lá, sozinha.”
A imagem batizada de Blue Marble foi capturada a cerca de 29.000 quilômetros da Terra, enquanto o Sol iluminava o globo por trás da Apollo 17.
Depois de quase seis horas de voo, Schmitt riu. “O problema de olhar para a Terra, especialmente para a Antártida, é que ela é muito brilhante”, ele afirmou, “e por isso estou usando meus óculos escuros através do monóculo”.
Em terra, eram quase 5h no Johnson Space Center em Houston, no Texas, e a sala de controle estava em silêncio. “Não estou atrapalhando seu sono, estou, Bob?”, perguntou Schmitt. “Continue falando. Estamos ouvindo”, disse a voz que saía do comunicador da cápsula. E assim a conversa continuou por muito tempo durante o voo, com a tripulação descrevendo as nuvens à deriva sobre o oceano e os continentes do nosso planeta.
Missões anteriores da Apollo haviam fotografado a Terra parcialmente oculta pela sombra. A imagem de grande influência Earthrise, por exemplo, mostra o planeta enquanto ele se eleva atrás da Lua. Até aquele momento, nossa visão da Terra era fragmentada, sem nenhuma maneira real de visualizar o planeta em sua totalidade.
O negativo da foto Blue Marble, de 1972, está cuidadosamente armazenado no Johnson Space Center da Nasa
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De repente, brilhando à luz do Sol, a Terra se revelou como um belo globo azul brilhante, cheio de vida e solitário na vastidão do espaço. Como resultado, acredita-se que a Blue Marble tenha exercido mais influência sobre a humanidade do que qualquer outra fotografia da história.
“Se você não consegue ver algo, é difícil visualizar que existe”, diz Nick Pepin, cientista climático da Universidade de Portsmouth, no Reino Unido.
“Acho que todos nós, que fomos criados com esta [imagem] desde pequenos, provavelmente achamos difícil imaginar uma época em que não sabíamos como era a Terra. Esta foi a primeira vez que pudemos realmente olhar para trás no espaço e ver nosso lar — e as pessoas, de repente, perceberam que era uma coisa incrível, mas também um sistema fixo no qual vivemos.”
A imagem oferece uma visão da Terra desde a região do Mar Mediterrâneo até a calota polar sul da Antártida. Nuvens pesadas pairam sobre o Hemisfério Sul, e quase toda a costa da África pode ser vista.
A Nasa, a agência espacial americana, dá oficialmente o crédito da imagem a toda a tripulação. Talvez nunca saibamos qual deles realmente tirou a foto, mas hoje ela é considerada uma das imagens mais reproduzidas de todos os tempos.
Mesmo enquanto estava explorando a Lua, a tripulação da Apollo 17 fez questão de tirar mais fotos de casa
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Cinquenta anos depois, às 7h39 (GMT) de 7 de dezembro de 2022, uma nova Blue Marble foi registrada por um satélite em órbita. Desta vez, um conjunto de 12 imagens tiradas com 15 minutos de intervalo revela mudanças perceptíveis na superfície do nosso planeta, resultado de 50 anos de aquecimento global.
Nas cinco décadas que separam estas duas fotos, uma das diferenças mais marcantes é a redução visível no tamanho da camada de gelo da Antártida. “Você pode ver o encolhimento da criosfera — o encolhimento da camada de gelo e a perda de neve”, diz Pepin. Isso, segundo ele, é um importante indicador das mudanças climáticas.
O Deserto do Saara também cresceu, enquanto a floresta tropical “está recuando mais para o sul”, ele acrescenta. Pesquisas mostram que a cobertura de árvores na vasta região do Sahel, que faz fronteira com o Deserto do Saara, está em declínio significativo. “O que se vê de forma dominante na [nova] imagem é o desmatamento e a perda de vegetação”, à medida que a cobertura do solo muda de vegetação para deserto.
A nova Blue Marble foi registrada a mais de um milhão de quilômetros de distância
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As novas fotos foram tiradas pela Câmera de Imagem Policromática da Terra (Epic, na sigla em inglês) da Nasa, que tem captado imagens do lado iluminado da Terra entre 13 e 22 vezes por dia desde 2015. O satélite fica no primeiro ponto de Lagrange, um ponto de equilíbrio entre o Sol e a Terra, a mais de um milhão de quilômetros do nosso planeta.
De meados de abril a meados de outubro, é tirada uma fotografia da Terra aproximadamente a cada hora e, no restante do ano, uma imagem a cada duas horas, explica Alexander Marshak, cientista de projeto da missão do satélite Deep Space Climate Observatory (Dscovr) da Nasa, que leva a câmera a bordo.
“No que diz respeito à Blue Marble, no 50º aniversário, decidimos fazer as mesmas imagens em intervalos de 15 minutos. Assim, em 15 minutos [a Terra] gira cerca de 100 km”, diz Marshak. E, graças aos avanços tecnológicos, ele acrescenta, “podemos ver as mesmas imagens, mas com qualidade muito melhor”, mesmo a um milhão de quilômetros de distância.
“E podemos ver muito mais do que isso”, acrescenta Marshak. “Obtemos imagens em 10 comprimentos de onda, de UV [ultravioleta] ao infravermelho próximo. A partir destas imagens, podemos obter as propriedades do ozônio, das nuvens e da água. A altura das nuvens, a localização das nuvens. Podemos observar as propriedades dos aerossóis, o tamanho das partículas, a quantidade de partículas. E até mesmo a forma dos cristais de gelo [nas nuvens], usando o brilho do Sol. Podemos [ver] se eles estão orientados horizontalmente ou aleatoriamente.”
Aqui vemos a Terra em um ângulo diferente da Blue Marble original — esta imagem foi tirada pela Epic em uma época diferente do ano, em 14 de abril de 2025
Nasa Epic
“Coletamos [dados sobre] a quantidade de folhas na Terra, e não apenas isso, mas também a quantidade de folhas que são diretamente iluminadas pelo Sol”, diz Marshak. Estes dados, combinados com observações da cor da superfície do oceano, podem permitir que os pesquisadores determinem a taxa de toda a atividade fotossintética na Terra.
O programa Dscovr não está em operação há tempo suficiente para tirar conclusões definitivas, observa Marshak, mas está começando a reunir dados que vão fornecer novos insights sobre como o mundo está mudando — como mudanças na cobertura e altura das nuvens, refletividade e cobertura vegetal.
Entre as outras mudanças que ocorreram desde aquela primeira foto da Terra como um todo, há 50 anos, está a quantidade de desenvolvimento e atividade humana na superfície do nosso planeta. Embora não seja visível nestas imagens do lado iluminado da Terra, outros satélites monitoram as luzes visíveis no lado escuro do nosso planeta.
Eles mostram um crescimento dramático na expansão urbana nos continentes, junto à atividade de navegação nos oceanos da Terra. Os incêndios florestais também brilham em grandes extensões de terra à noite, tendo dobrado de frequência nos últimos 20 anos.
Em 1972, a Blue Marble provocou uma reavaliação em massa do nosso lugar no Universo. Os astronautas que viram a Terra do espaço relataram um profundo sentimento de admiração, uma sensação de interconectividade, consciência ambiental e autotranscendência. Isso é chamado de “efeito da visão geral”.
Na vastidão total do espaço, a beleza da Terra pode ser avassaladora. Descobriu-se que esse sentimento de intensa admiração provoca uma mudança fundamental no pensamento, uma espécie de realinhamento cognitivo, à medida que a pessoa tenta processar novas informações perceptivas.
“Surpreendente — simplesmente, uau”, foi como Helen Sharman, a primeira astronauta do Reino Unido, descreveu sua primeira visão da Terra do espaço. O ano era 1991, e a química de 27 anos havia acabado de ser lançada do Cazaquistão para iniciar sua jornada até a estação espacial soviética Mir.
“Tínhamos duas janelas na espaçonave Soyuz”, diz ela. “O comandante, que senta no meio, não tem janela. Mas o cosmonauta de pesquisa, que era minha função, e o engenheiro de voo — nós dois tínhamos uma. Eu estava no assento da direita, e o engenheiro de voo, no da esquerda. Durante o lançamento, meu lado da espaçonave inclinou levemente em direção à Terra. Imediatamente, a luz entrou por aquela janela”.
Sharman descreve sua visão da curvatura da Terra, os “mares azuis deslumbrantes”, as nuvens brancas e o espaço negro acima. A Terra, diz ela, parecia ter seu próprio brilho. “O Sol estava em um ângulo bastante baixo, de modo que se refletia no mar e depois voltava para as nuvens — e das nuvens abaixo para a Terra. Em seguida, [a luz] surgia, de modo que parecia que a Terra tinha sua própria fonte de luz.”
Ela compara a cor com o “ultramarino das pinturas renascentistas”. “É bem diferente do resto da natureza. É esse brilho contra a escuridão do espaço, você simplesmente vê a Terra como um grande ponto azul deslumbrante.”
Depois, quando seus olhos começaram a se ajustar à escuridão do espaço, as estrelas apareceram aos bilhões. “Sabemos que provavelmente há bilhões de estrelas apenas em uma pequena parte da Via Láctea, talvez até trilhões. E achamos que pode haver até alguns trilhões de galáxias no Universo. Isso [faz você] perceber a insignificância da Terra”.
Sharman vivenciou esses pensamentos conflitantes de uma só vez. “Nossa atmosfera é tão tênue. Como seria fácil apagar toda aquela camada superior, onde se encontra a maior parte da vida.” Mas, por outro lado, ela acrescenta: “A Terra não é o ponto focal do Universo”.
Até hoje, Sharman sonha que está “flutuando dentro de um dos módulos, e para em uma janela, olhando para fora com os outros tripulantes”. A experiência de ver a Terra do espaço, diz ela, “mudou definitivamente minhas prioridades de vida”. “O mais importante são as pessoas. E, claro, o meio ambiente e a ecologia que são necessários para manter a Terra funcionando.”
O trânsito da Lua em frente ao globo totalmente iluminado da Terra, capturado pela Epic
Nasa Epic
O efeito da visão geral, dizem os especialistas, é duradouro e mais poderoso do que outros momentos de admiração. Pela primeira vez, a Blue Marble ofereceu a toda a humanidade a chance de vivenciar o fenômeno em algum grau. De fato, pesquisas mostram que é possível vivenciar o efeito da visão geral com os dois pés firmes no chão.
Assim como a Earthrise, a imagem batizada Blue Marble se tornou um emblema do movimento ambientalista. Ela retrata um planeta que precisava de cuidados em escala global.
A Blue Marble foi usada para ilustrar a hipótese de Gaia, desenvolvida nas décadas de 1960 e 1970, que propõe que a Terra e seus sistemas biológicos agem como uma enorme entidade única, que existe em um delicado estado de equilíbrio. E, embora controversa entre os cientistas, a teoria deu início a uma abordagem holística das Ciências da Terra.
A imagem também se tornou um símbolo de unidade, pois pela primeira vez pudemos ver a Terra sem as fronteiras imaginadas pelo homem, que nos dividem como nos mapas. A Blue Marble foi adotada por grupos de ativistas como o Friends of the Earth e eventos como o Dia da Terra. Antes disso, as imagens de campanhas ambientais geralmente se concentravam na poluição ou em espécies ameaçadas de extinção.
A fotografia apareceu em selos postais e na sequência de abertura do documentário do ex-vice-presidente americano Al Gore, Uma Verdade Inconveniente, e inspirou pesquisas sobre os sistemas da Terra com o estabelecimento de instituições de pesquisa climática, como o Instituto Max-Planck, com sede em Munique, na Alemanha.
Observando as imagens da Terra de 1972 e 2022 lado a lado, Pepin descreve a “atmosfera inquieta” do planeta. Visíveis em ambas as imagens, nuvens se formam acima das áreas verdes da floresta tropical, demonstrando o vínculo intrínseco entre as florestas e a chuva.
“Se você observar a África [central], vai ver que a maior parte das nuvens, especialmente na [imagem] anterior, é bastante irregular, o que indica tempestades. Mas se você for mais ao norte e observar o Deserto do Saara, vai ver que não há nuvens.”
“Quando você olha de cima, vê todas as conexões, as relações gerais entre as áreas”, destaca Pepin. “Por exemplo, o Kilimanjaro se ergue sobre campos, com neve no topo. Se você vivesse nas encostas, talvez não soubesse que havia neve no topo, e a importância da conexão entre essas áreas.”
Olhar a Terra do espaço desta forma, diz ele, “faz você apreciar as relações que existem entre diferentes partes dos ecossistemas”. “Se você só consegue enxergar a sua parte, pode pensar que os problemas ambientais estão acontecendo apenas em outro lugar, e presumir que ‘não é problema meu'”, explica Pepin.
No entanto, a limitação, segundo ele, é a escala. “Você perde o detalhe. Você precisa de ambos. Você também precisa de verificação de campo [validação das informações em campo].”
No entanto, há uma “enorme diferença fundamental” entre estas duas imagens, diz Levasseur. “Uma foi capturada por um ser humano — e a outra, não. Ela não tem o mesmo impacto. E isso se deve ao fato de que não há nenhuma pessoa ali.”
Levasseur está ansiosa pelas fotos que vão ser tiradas na próxima missão tripulada a ir até a Lua: a Artemis 2, prevista para 2026. “Não haverá outra imagem completa da Terra, do meu ponto de vista, até que os seres humanos se afastem do planeta novamente. Eu não estava viva em 1972. Será um grande momento saber que as pessoas estão nos observando de tão longe.”
“Por mais que gostemos de pensar nos satélites como uma espécie de nossos substitutos”, diz ela, “sei que há uma pessoa por trás daquela câmera, então, há algo diferente nela, e sempre haverá.”
Leia a íntegra desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.