Do auge ao abandono: antiga oficina ferroviária vira refúgio para o crime

Foto: William Mazur

 

 

“São sete horas da manhã.” O frenético “apito”, acionado por ar comprimido, ecoava em toda a cidade, marcando o início de mais um dia de trabalho nas oficinas da então Rede Ferroviária Federal, a conhecida RFFSA, na área central de Mafra.

 

Nos imensos galpões, centenas de operários movimentavam o setor de mecânica de locomotivas e vagões, enquanto, ao lado, outros estudavam na antiga escola profissional, com o sonho de um dia integrar o efetivo da estatal.

 

Assim foi a rotina por mais de 30 anos, entre as décadas de 60 até a privatização, em 1998. Os trabalhos chegaram a seguir por mais alguns anos, já com bem menos empregados, tentando resistir aos tempos da América Latina Logística (ALL) e Rumo Logística, quando o setor foi silenciosamente descontinuado em Mafra.

 

Foto: Robson Komochena

 

Desertos, sem manutenção e com pouca vigilância, os barracões da extinta oficina se tornaram, nos últimos anos, um ponto de degradação e criminalidade.

 

Vândalos arrancam as últimas peças metálicas para revenda, pichadores tomam conta das paredes e usuários de drogas transformaram o espaço em refúgio. Ocorrências de furtos, consumo e tráfico de entorpecentes são constantemente atendidas pela Polícia Militar, revelando um verdadeiro problema, na mesma proporção do que um dia já foi sua importância para o mercado de trabalho e a economia local.

 

 

O imóvel em questão fica localizado na avenida Coronel José Severiano Maia, em frente ao terminal rodoviário, e hoje está sob gestão do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), órgão que incorporou a administração de todo o patrimônio da extinta RFFSA.

 

Além da área de oficinas, o “complexo” inclui uma velha cancha de bocha, a sede do antigo Peri Ferroviário e uma ponte de ferro desativada há décadas, que fazia parte de uma linha que atravessava o antigo Batalhão Mauá.

 

 

Nos últimos meses, com o aumento da população de moradores de rua e também de pessoas envolvidas com drogas, o local passou a ser frequentemente citado em boletins de ocorrência e notícias policiais.

 

A reportagem do Riomafra Mix foi até o local e, sem nenhuma dificuldade, acessou todo o complexo. Com portão aberto, cercas arrebentadas e portas arrombadas, o cenário é de tristeza. O que era possível ser furtado foi levado. Restam paredes pichadas, lixo e sinais de alguma movimentação, já que o mato alto amassado evidencia os “carreiros” percorridos pelos criminosos.

 

 

Ponte vira ponto de tráfico

Há pelo menos quatro meses, a ponte protagonizou episódios policiais à parte, principalmente no tráfico de drogas.

 

Na primeira semana do ano, câmeras de monitoramento registraram um homem utilizando a ponte para fugir para Mafra, depois de assaltar uma farmácia na área central de Rio Negro.

 

 

Na mesma semana, um ponto de tráfico que funcionava no pilar da mesma ponte foi desmantelado pela Polícia Militar. Chamou a atenção dos policiais a forma como a droga era comercializada: havia uma corda com um litro plástico amarrado, que era utilizada para transportar o dinheiro e entregar os entorpecentes aos usuários, próximo ao pilar da ponte.

 

 

Nas semanas seguintes, outras prisões pelo mesmo crime foram efetuadas pelas polícias militares das duas cidades nos arredores da ponte.

 

Outra ocorrência que despertou a atenção das autoridades foi o vandalismo contra câmeras de segurança próximas à pista de skate, voltadas para a ponte, que foram destruídas duas vezes.

 

Invasão da cancha de bocha e Peri Ferroviário

Anexo às instalações das oficinas, também outros dois imóveis também estão em ruínas: a antiga cancha de bocha e a sede do Peri Ferroviário.

 

 

A edificação do Peri chegou a ser gerida pelo município por um tempo, abrigando a Casa das Etnias, mas ainda na gestão anterior, foi devolvida à União. Com isso, voltou a fazer parte dos imóveis geridos pelo DNIT.

 

Os dois locais foram invadidos e se tornaram abrigo informal para moradores de rua, aumentando ainda mais o problema na região.

 

 

Além de abordagens policiais de envolvidos em furtos, roubos e tráfico de drogas, os locais foram alvo de pelo menos dois princípios de incêndio em 2024.

 

Prefeitura busca repasse dos imóveis

Ciente da situação, o prefeito Emerson Maas (MDB) busca, desde que assumiu a Prefeitura, que os imóveis sejam repassados para o município.

 

“Estou desde o início da gestão tentando, junto à Secretaria do Patrimônio da União (SPU), que esses patrimônios sejam repassados ao município, para que possamos ter autonomia e dar a devida destinação”, destacou Maas.

 

 

O prefeito citou outros dois imóveis administrados pela Prefeitura. “Por exemplo, os imóveis que a gente conseguiu tomar posse, como a antiga estação ferroviária e a escola profissional, são patrimônios que estamos conseguindo gerir e não dão problema”, detalhou.

 

Maas já tem, inclusive, planos para o local, caso obtenha êxito no pedido. “Estou ‘brigando’ para que a antiga oficina seja passada ao município. Ali é um grande prédio, onde poderíamos instalar a própria Prefeitura. Mas, como a área está na mão da Rumo, ainda é considerada área operacional, mas estamos lutando”, concluiu.

 

Polícia Militar realiza operações ostensivas

O tenente-coronel Silvano Sasinski, comandante do 38º Batalhão de Polícia Militar de Mafra, informou que está ciente do problema e direciona operações pontuais no local.

 

“Não é de hoje que temos esse problema ao longo da linha férrea e área das oficinas. É um local que não tem iluminação, não tem trânsito de veículos e é de difícil acesso para as viaturas. Especialmente por ser um local sem presença de pessoas, acaba sendo chamariz para ações de tráfico de entorpecentes”, comentou.

 

 

De acordo com Sasinski, desde 2024 o batalhão está alertando a comunidade e realizando ações voltadas ao local.

 

“Temos alertado a comunidade para que tome cuidado ao andar pela região, principalmente à noite, e também estamos realizando ações, desde a busca de informações através da agência de inteligência até nossas programações operacionais e ostensivas. A nossa ação, principalmente na questão de usuários e tráfico de drogas, é constante”, detalhou o comandante.

 

“Também contamos com a colaboração da comunidade através das denúncias. O apoio da comunidade é fundamental, através do telefone 190 ou via aplicativo PMSC Cidadão, onde também é possível adicionar imagens”, concluiu.

 

 

Já o 1º tenente Felipe Borne, comandante da 2ª Companhia de Polícia Militar de Rio Negro, também destacou a atuação ostensiva e preventiva.

 

“A estrutura existente da linha férrea favorece a ação de criminosos, que aproveitam a dificuldade de acesso para realizar ações delituosas nos dois estados e transpor a divisa. No entanto, são realizadas ações preventivas no local, abordagens e monitoramento através de câmeras. Diante desse cenário, foi possível obter êxito em diversas prisões no local”, pontuou Borne.

 

Polícia Civil detalha situação ao MPF e MPSC

Através de um ofício, o delegado regional de Mafra, Cassiano Tiburski, relatou a situação ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Ministério Publico de Santa Catarina (MPSC).

 

 

“O local, outrora destinado a oficina e estação de trens, encontra-se em completo estado de abandono, com edificações e barracões em avançado processo de deterioração, sem contenções adequadas (muros ou cercas), sendo utilizado por traficantes e usuários de substâncias entorpecentes”, cita o documento.

 

O ofício relata a ausência de manutenção, de muros, cercas e de vigilância. “Possível descumprimento da função social da propriedade, princípio previsto no art. 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal, e no art. 2º, inciso VI, do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001). Ademais, a omissão da concessionária quanto à preservação do bem público compromete a ordem pública e a segurança da comunidade local, conforme os princípios estabelecidos no art. 3º da mesma lei”, detalhou.

 

O texto ainda cita a dificuldade do policiamento em virtude da extensa área, e a dificuldade em identificar com precisão os responsáveis pela comercialização de entorpecentes, já que existe uma notável rotatividade. “A situação se agrava com o abandono estrutural e a falta de controle, fatores que facilitam a proliferação de atividades ilícitas. Esse cenário reflete o que é descrito pela teoria das janelas quebradas, segundo a qual a degradação ambiental e o descaso em relação a bens públicos criam um ambiente propício ao aumento da criminalidade, promovendo uma sensação de impunidade e insegurança”, relata.

 

 

DNIT passa a situação para ANTT

Questionado sobre a situação, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), responsável pela administração do patrimônio ferroviário no Brasil, não comentou o caso.

 

Em nota, direcionou a situação para a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). “O DNIT informa que questionamentos sobre o espaço devem ser direcionados à ANTT, que tem a responsabilidade legal pela fiscalização”, disse.

 

 

ANTT destaca concessão

A ANTT informou que as instalações das oficinas e o pátio ferroviário estão sendo geridas pela Rumo Logística, através de Termo Aditivo ao Contrato de Concessão da Rumo Malha Sul.

 

“Nesse termo, a ANTT atua como interveniente, enquanto o DNIT (cedente) e a Rumo Malha Sul (cessionária) são os agentes principais nas relações contratuais envolvendo as questões patrimoniais. A concessionária informou que realiza rondas periódicas no local para garantir a segurança até que uma nova destinação seja definida”, destacou, em nota.

 

Sobre a ponte ferroviária desativada, o órgão informou que não possui ingerência. “Com relação à ponte ferroviária que liga Rio Negro a Mafra, a ANTT esclarece que a estrutura não está sob a gestão da concessionária, tendo sido transferida para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)”, concluiu.

 

 

IPHAN nega posse de ponte

Indagado sobre a ponte de ferro e eventuais projetos de restauração, o IPHAN negou sua gestão.

 

“A ponte mencionada não faz parte da lista do patrimônio cultural ferroviário, nem é tombada em esfera federal, de modo que o IPHAN não possui qualquer responsabilidade sobre a mesma no presente momento”, pontuou o órgão, por meio de nota.

 

 

Rumo não tem definição para o local

Em nota, a Rumo Logística confirmou que as instalações das oficinas e o pátio ferroviário estão sob sua responsabilidade e fazem parte do contrato de concessão.

 

“São realizadas rondas periódicas, como medida de segurança, até que seja definida uma nova destinação para o local”, informou.

 

Sobre a ponte ferroviária, a concessionária também negou a responsabilidade. “A empresa esclarece ainda que a ponte ferroviária, que conecta o Rio Negro a Mafra, não está sob a gestão da companhia”, concluiu.

 

Veja todas as fotos do local

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