Quando o medo torna-se diversão

“Talvez você possa ficar chocado. Até talvez horrorizado. Se você não se importa de submeter seus nervos
a tal tensão, essa é a sua chance de… bem, nós te avisamos!” É esse recado, dado pelo ator Edward Van Sloan, que abre o filme Frankenstein, lançado em 1931. Apesar da abertura inusitada, o público lotou as salas de cinema na época para assistir à adaptação do livro da escritora Mary Shelley. E o longa, que custou US$ 262 mil para ser produzido, ultrapassou as expectativas e conquistou, na época, bilheteria de US$ 12 milhões.

A provocação feita à audiência (cogitar abandonar a projeção para não ficar horrorizado) demonstra que, há mais de um século, parte da população gosta de sentir medo. E a popularização do Halloween (Dia das Bruxas) no Brasil, celebrado em 31 de outubro, que se iniciou na Irlanda e espalhou-se para o mundo, reforça a tese. 

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A data não passou batida em Santa Cruz do Sul. Escolas fizeram concursos de fantasias. No Bairro Esmeralda, a festa de Halloween tornou-se tradição entre os moradores. E os estabelecimentos comerciais decoraram vitrines com figuras aterrorizantes. A celebração ainda envolveu lançamentos de filmes de terror nas salas de cinemas locais, entre eles Terrifier 3. Ponto alto na agenda pop, neste sábado acontece a Procissão das Criaturas, que leva milhares de pessoas ao centro, vestidas de seus personagens
de terror favoritos.

O fascínio pelo terror, contudo, não se limita às festas de rua ou aos cinemas. Professora do curso de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul, Angela A. Rothmund cita como exemplo o fato de as crianças gostarem de ouvir histórias de terror, como a do lobo mau ou a do bicho-papão. Conforme ela, de maneira geral, as sensações de terror remontam às recordações da infância. “As primeiras experiências de terror começam cedo. As narrativas cinematográficas costumam vir associadas a lembranças, como
a da ausência dos pais”, explica.

No cinema, o horror deu asas à imaginação e abordou tabus

Wednesday Addams, de Família Addams (1991)

Embora o fascínio pelo medo seja expresso em diferentes formas, é no cinema que se destaca. Nos primórdios da sétima arte, em meados de 1890, o terror surgia como gênero por iniciativa do francês George Mellies, um dos pioneiros, na produção A Mansão do Diabo.

“O próprio cinema começou no assombro”, afirma a professora de Psicologia Angela A. Rothmund. Ela destaca que, na época, era uma experiência fantástica e assombrosa ir ao cinema e ver uma imagem capturada. Um dos casos mais famosos é a primeira exibição da chegada de um trem, dos irmãos Lumiére, que, segundo registros, fez com que algumas pessoas morressem de medo. “A escritora Susan Sontag nos dirá que quase tudo no cinema seria uma tentativa de perpetuar e reinventar aquela sensação de assombro que o público vivenciou pela primeira vez assistindo ao trem há quase 130 anos. Disso surge uma das hipóteses para que o terror convoque sujeitos que gostam da sensação, até os que temem e morrem de medo”, explanou.

Para o jornalista e cineasta gaúcho Felipe M. Guerra, que atualmente cursa o segundo mestrado em Comunicação e Gestão de Indústrias Criativas na Universidade do Porto, em Portugal, o gênero possui uma grande importância para essa arte. Na sua avaliação, ele permitiu aos idealizadores exercerem a criatividade e forjarem universos e criaturas que não existem na vida real. “Um bom artista assim pode explorar sua imaginação sem limites”, afirma.

Guerra acrescenta que o terror também permitiu aos criadores explorar tabus e temas complexos que não costumam ser abordados no cinema, de forma explícita ou implícita. Em A Noite dos Mortos Vivos (1968), por exemplo, a invasão dos zumbis é uma metáfora para a Guerra do Vietnã, fortemente criticada na época pelos norte-americanos. 

Com o passar das décadas, o cinema de terror foi amadurecendo para acompanhar a evolução tecnológica e as mudanças na sociedade. Conforme Guerra, o gênero passou a assumir, ao longo dos anos, a intenção de assustar, chocar e perturbar o público. 

Além disso, diferentemente de outros gêneros cinematográficos, o horror incorporou as novas tecnologias à sua linguagem narrativa. Com a popularização das câmeras, surgiu o subgênero found footage, que se passa por um documentário ou uma transmissão online. A Bruxa de Blair, de 1998, foi produzido com um orçamento de US$ 60 mil, e gerou retorno de US$ 248 milhões, tornando-se um dos mais rentáveis da história. “É uma questão que outros gêneros não permitem”, comentou o cineasta.

Durante o século 20, fatos históricos fizeram com que os filmes de terror se tornassem mais relevantes para o público. Em 1945, após a explosão das bombas nucleares no Japão, em Hiroshima e Nagasaki, o medo atômico fomentou uma série de filmes sobre o tema, sendo Godzilla (1954) o mais famoso. 

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Outro momento em que o gênero esteve bastante popular foi na década de 1970, fomentado especialmente pelas crises sociais e políticas que eclodiram por todo o mundo, especialmente nos Estados Unidos. Foi nesse contexto que clássicos surgiram, incluindo O Exorcista, O Bebê de Rosemary e O Massacre da Serra Elétrica, todos lançados em um curto espaço de tempo. “Era um momento em que o país passava por um momento complexo e muitos cineastas tentaram explicá-lo através do horror. E o público tentava entender o que estava acontecendo no mundo, através dos filmes”, explica Guerra.

Para o cineasta, a rentabilidade do terror faz com que em todos os anos seja lançada grande quantidade de produções, sobretudo independentes. “É um investimento de menor risco para os estúdios. O horror sempre vai ter público. Não só entre os fãs do gênero, mas também entre aqueles que vão movidos pela curiosidade, para se desafiar”, afirma Guerra. Na sua convicção, enquanto os outros gêneros tendem a sumir, o terror haverá de existir para sempre.

Uma maneira de encarar a morte

A atração do ser humano pelo horror pode ser explicada pela psicologia. De acordo com a professora Angela A. Rothmund, obras de terror, sejam filmes ou livros, possibilitam uma experiência segura e controlada da curiosidade do humano sobre o absurdo, o estranho, a morte, o desconhecido. 
Por meio da fantasia, segundo a acadêmica, o sujeito se protege contra as consequências de uma vivência assustadora e desintegradora. Cita como exemplo o aumento da busca pos filmes de temáticas de catástrofes biológicas durante a pandemia. 

“A combinação da curiosidade do sujeito com o ensaio controlado de experimentar no corpo vários aspectos biológicos, a adrenalina, a pressão sanguínea aumentada, o ‘frio na barriga’ e o alívio após terminar o filme, as mesmas sensações e emoções são evocadas em atividades e comportamentos que geram prazer. Portanto, acontece essa sensação de prazer, de catarse, sem precisar efetivamente lutar contra zumbis assassinos, ou palhaço que devora criancinhas”, detalha.

O terror, na sua avaliação, lida com questões sobre as quais realmente não queremos falar. A começar pela ideia mais básica, que é a morte. “Todos os filmes de terror tratam da morte, um assunto que a maioria das pessoas normalmente não discute. A morte é inerente à vida, e a arte, aqui o cinema, é um lugar possível dessa relação visceral. A morte causa certo horror, exatamente por falarmos pouco disso em sociedade”, afirma.

Angela justifica que, como sociedade, é necessário termos cuidado com a morte. Para ela, só podemos viver bem quando morremos bem. E o lugar privilegiado para falarmos desse tema, um tabu ainda na sociedade, é no cinema e nas histórias, sem limitar-se ao terror. “Quantos filmes de narrativa romântica são atravessados pela morte e pelo luto, quantos lutos vivemos em vida também”, indaga.

Sobre a fase certa para começar a consumir obras do gênero, a psicóloga destaca que cada idade tem suas indicações. Ela considera importante as crianças ouvirem histórias que as assustam, para poderem aprender a lidar com esse sentimento. Porém, definitivamente, a classificação dos filmes tem um motivo. “Filmes de terror adultos devem ser assistidos por adultos. A criança precisa de tempo para aprender a lidar com os medos, com desenhos, filmes, jogos e brinquedos, que causam pequenos medos controlados e adequados a sua etapa de desenvolvimento.”

Angela destacou ainda a necessidade de avaliar individualmente cada caso. Crianças com medo intenso ou transtornos de ansiedade, por exemplo, podem sofrer intensamente por medos que talvez os adultos não vejam como significativos. Nesse sentido, vale limitar a idade nos streamings e tomar cuidado com as propagandas de filmes de terror. “A orientação aos pais é sempre escutar seus filhos e valorizar os sentimentos deles.”

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Dez filmes para conhecer o gênero

Por Felipe M. Guerra*

  1. O Massacre da Serra Elétrica (1974) 
  2. O Enigma de Outro Mundo (1982)
  3. O Iluminado (1980)
  4. Um Lobisomem Americano em Londres (1981)
  5. Ritual dos Sádicos/O Despertar da Besta (1970)
  6. Terror nas Trevas (1981)
  7. Ring – O Chamado (1998)
  8. Zombie – O Despertar dos Mortos (1978)
  9. Fantasmas (1979)
  10. Aterrorizados (2017)

Natural de Carlos Barbosa (RS), localizada a cerca de 130 quilômetros de Santa Cruz, Felipe M. Guerra é crítico de cinema e cineasta. Ficou popular no início dos anos 2000 após um dos seus filmes, Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado, uma paródia ao gênero, tornar-se tema de uma reportagem do Fantástico. 

Ele voltaria a ser assunto na televisão após dirigir seu curta-metragem seguinte, O Mistério na Colônia, que teve como protagonista o apresentador Luciano Huck. Na época, sua participação foi retratada no programa “Caldeirão do Huck”. Entre seus vinte trabalhos cinematográficos está o documentário Deodato Holocaust, sobre o cineasta italiano Ruggero Deodato, que foi lançado na Europa. Parte de seus filmes estão na internet e continuam sendo redescobertos pelas novas gerações.

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