Desde os primórdios: relembre a trajetória do DJ Tuca, que foi residente da Flash

Pode parecer algo impensável hoje em dia, mas houve um momento na história da música eletrônica dançante no Brasil em que se podia encontrar um local para curtir um DJ tocando em toda cidade interiorana de médio porte em praticamente qualquer UF. Muitos foram os nomes dados a esses espaços no decorrer do período de quase trinta anos em que reinaram: casa noturna, danceteria, balada, club… mas, independentemente da denominação ou da época, o residente sempre ocupou uma posição central na interface entre estes locais e seu público. 

A estadia desses agentes culturais era longeva e o contato com a pista constante, semanalmente empenhados em colocar corpinhos para se mexer nesses ambientes fechados que procuravam servir um concentrado do que estava rolando nas pistas internacionais e, vez ou outra, alguns edits ou hits nacionais. Essa mesma regularidade pautava a parte criativa, claro, mas a trabalhista também. Todo DJ “da casa” era um funcionário, alguém incumbido com uma tarefa e orientado a cumprir certas metas dentro daquele empreendimento, o que implicava ter uma responsabilidade imensa na construção e na manutenção da identidade do estabelecimento.

Muito mais que uma chancela, uma simbiose que fazia ambos estarem intimamente ligados, nome e reputação indissociáveis: Magal do Madame, Mau Mau do Hell’s, Mauro do Massivo, Vadão da Toco, Badinha da Overnight, Carlo Dallanese do Sirena e, claro, o Tuca da Flash. Conhecido pelos pares e celebrado pelo público que regularmente ia curtir suas seletas na lendária casa de Bragança Paulista, este devotado seletor e produtor campinense permanece até hoje seguindo os rumos de uma profunda paixão musical que se tornou profissão e já se estende por quatro décadas.

Por mais que seja considerado uma platitude entre os artistas da mesma geração, o início dessa jornada se deu na relação obsessiva de um precoce amante da música com a coleção doméstica de discos e fitas que, por sorte, logo encontrou lugar de expressão num estabelecimento local que lhe confiou a tarefa de ser uma espécie de “cue guy”, alguém incumbido de soltar as músicas na hora indicada de acordo com as instruções do residente responsável. Dois meses de intensa dedicação à tarefa lhe renderam a confiança do “chefe” e a responsabilidade de cuidar sozinho das transições na abertura da casa usando um mixer desprovido de pré-escuta.

Um cenário desafiador, especialmente para um adolescente de quinze anos, mas que forjou a destreza técnica de alguém cujos gostos já haviam sido firmados numa saudável dieta dos mais variados gêneros afro-diaspóricos que animavam os bailes daqueles tempos. Começava a surgir então um apetite pelo conhecimento das tecnologias de mixagem e edição e o que lhe renderam a direção de um programa de rádio e, dali, um convite irrecusável para cuidar da pista com a qual eventualmente desenvolveria aquela conexão fundamental para os DJs daquele período.

Quem o chamou foi um dos sócios do novo estabelecimento, alguém que se estabeleceria como um dos mais importantes atores do entretenimento noturno da região e ali começava a se aventurar no ramo que fundaria seu renome. O mesmo que atualmente repousa muito mais nos feitos de sua filha, a DJ Anna, que ao seu glorioso passado como empreendedor. Fazia pouco que havia se formado em eletrônica e tinha dayjob estável na IBM, mas o que a Flash lhe proporcionou foi a liberdade criativa e a responsabilidade administrativa que transformariam uma vocação numa ocupação profissional.

Incumbido de administrar não apenas a vibe da pista mas também a viabilidade e visibilidade do club entre tantos concorrentes regionais, o jovem residente-gerente do novíssimo bastião da vida noturna das redondezas sabia que a diferenciação seria a melhor estratégia e procurou orientar sua visão curatorial rumo ao inexplorado. Um universo cujas possibilidades lhe eram apresentadas em abundância a cada uma de suas visitas à capital paulista: das danceterias às lojas de discos que frequentava, tudo girava em torno dos ritmos estrangeiros que alimentavam o “fervo” do underground.

Nada mal para um um nerdola de 22 anos que começou brincando com fitas no sistema três em um caseiro, atividade lúdica favorita de muitos infantes naqueles tempos, especialmente os que eram naturalmente aspirantes a editores e eventualmente viriam a ser seletores musicais. Logo a casa iria periodicamente inverter o fluxo festivo da Rodovia dos Bandeirantes e muitos frequentadores viriam de cidades maiores do entorno e até mesmo da capital e para curtir ali.

Seis triunfais anos se passaram como um ponto de referência para os festeiros regionais e de alhures. Contudo, como é natural ocorrer com uma trajetória artística prodigiosa como a dele, ofertas surgiram em outros estabelecimentos. A empreitada escolhida pelo jovem Tuca apareceu na forma de uma promissora nova casa sediada em Campinas, então a oportunidade que parecia ser a mais auspiciosa naquele momento: a de capitanear um espaço dançante num dos principais centros urbanos da vizinhança.

Em teoria, tudo convergia para que o novo emprego fosse um aprimoramento na carreira, trazendo uma ampliação radical de suas atribuições como parte do quadro societário. Agora com maiores responsabilidades e riscos envolvidos, ele se lançou numa etapa desafiadora para qualquer DJ da época, num papel que envolvia sérias implicações administrativas e lhe ensinou lição valiosa, ainda que dolorosa.

A gestão do projeto, que tinha enorme potencial para ser algo glorioso, acabou por se tornar algo oneroso e, a cada tentativa de acertar o rumo do empreendimento, notava sua autonomia sendo tolhida em cada setor que compunha suas obrigações. Sua relação com o sócio proprietário, um empresário inexperiente nos ‘negócios da noite’ de Mogi-Guaçu, foi desgastando-se gradativamente e revelando uma aguda incompatibilidade de visões de gestão. Inevitavelmente, o resultado foi seu desligamento e um profundo choque de realidade que contaminou negativamente a paixão por aquilo que realmente o impelia.

Sua primeira encarnação como profissional do som findava nesse tom, bastante melancólico, seguido de um longo período de distanciamento das cabines e reaproximação com a academia, voltando a vestir o manto de engenheiro.  Claro que, mesmo em segundo plano, a música ainda era parte constitutiva do que continuaria fazendo nas décadas seguintes e, entre o trabalho numa produtora que fundou, a tentativa de criar e comercializar equipamentos totalmente fabricados no Brasil – no caso, um isolador de frequências como o que vemos ser usado pelos DJs mais clássicos, criado junto a outro engenheiro oriundo da vizinha Amparo – e a programação do hoje lendário Rota 91 na Educadora FM, ele se manteve próximo do universo musical do qual participou ativamente por tanto tempo.

Mas essa proximidade deixou de ser suficiente após um acontecimento que transformaria não apenas sua rotina e a de seus familiares, mas também sua perspectiva da realidade como um todo. 2017 foi o ano em que um diagnóstico de câncer chegaria como um meteoro e viraria tudo de cabeça para baixo, embaralhando planos, reorganizando prioridades e redefinindo propósitos no decorrer de sete árduos meses de tratamento durantes os quais até sua sobrevivência era incerta.

A superação da doença implicou na ressignificação ampla e profunda daquilo que guardava como seus objetivos e o reencaminhou para sua grande paixão, agora renovada após uma jornada de intensa imersão. Foi nesse pique de reencontro com a musicalidade, mesma que não apenas estimulou sua vida até ali, mas motivou sua sobrevida a partir dali, empenhando-se em submeter sua rotina a várias reviravoltas: mudou seu turno na Band FM e começou a procurar gigs como DJ, sendo recebido como convidado frequentemente em espaços importantes da região, entre eles o Club 88.

Mudança foi a constante em sua trajetória dali em diante, mesmo que implicasse também encerrar certos capítulos que foram fundamentais para ela, como o desligamento do Rota 91 em 2018, enquanto abria outras frentes criativas, individuais e coletivas. E aqui se destaca seu retorno ao papel de residente, o inicial e principal de sua carreira, onde brilhou novamente como um curador preocupado em mesclar gostos e perspectivas entre seletores de gerações e origens as mais diversas.

Novos horizontes que começaram a se delinear cada vez mais claramente nas noites da Drinkeria do Sala 575, um listening bar no qual desenvolveu uma proposta curatorial inédita, centrada na reunião de DJs de gerações distintas, que ajudou a mudar o cenário local de forma . Cabe lembrar que Campinas então era vista como um bastião do Techno e a House Music encontrava poucos lugares de exposição, ainda que abrigasse um contingente considerável de aficionados, muitos deles educados nas pistas animadas pelo próprio Tuca no decorrer das décadas.

O trabalho de conexão intergeracional de talentos encontrou um lar nos sábados do Galeria 1212, onde ele mantém sua residência até hoje, firme na tarefa de manter um polo catalisador dessas preciosas energias de criação e reprodução da arte de mover rabas e elevar almas. Agora plenamente dedicado a tudo que se refere à música propriamente dita, ele ainda se mostra disposto a expandir sua atuação por cada meandro do fazer musical, culminando em inúmeros projetos, entre eles esta seleção comemorativa que elaborou para a Grooveland.

Em muitos aspectos, ela é o que podemos chamar de uma ‘coletânea conterrânea contemporânea’: uma seleta cuidadosamente estruturada numa narrativa minuciosamente construída para celebrar a inventividade houseira cultivada nas redondezas. Ela é fruto de uma relação profícua e duradoura com o selo que, afinal de contas, se consolidou como o principal disseminador do gênero no vale e também o do que era ali produzido e é fartamente documentado na seleção.

De certo modo, a compilação veio como um presente tardio da pandemia, período de isolamento para uns e enfurnamento para outros, durante o qual se trancou no estúdio, produzindo e promovendo as coloridas sonoridades da sua musa, a House Music. A mesma que inspira Edground, cabeça da gravadora e outro dos mais ativos divulgadores desses ritmos por aqueles lados. O que temos é uma poderosa edição de uma série anual já tornada um clássico entre os fãs, onde Tuca busca encapsular a energia crescente da pista no desenrolar da noite, mixando do seu modo elegante e característico algumas faixas inéditas a outras bem conhecidas do catálogo.

Ela é, de muitas maneiras, o coroamento de um longo trajeto marcado pela não-linearidade, mas definido pela devoção inquebrantável de um amante da música com uma noção clara, ainda que jamais imutável, tanto do que deseja ouvir quanto do que curte tocar. A mesma que agora se materializa na empreitada que vai capitanear a partir deste mês para dar ainda mais vazão a sua criatividade curatorial, a Tambor Records, um escoadouro para a rica produção nacional e também da dele próprio como membro do Tomba Trio, o projeto que criou ao lado de Mimi e Marcio S. 

Tendo esses projetos como o cerne de sua vida, ele permanece ativo, jamais ocupado demais para abraçar mais alguma forma de se expressar através daquilo que sempre amou.

Por Francisco Cornejo

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