
Historiadora alemã Miriam Gebhardt estima que cerca de 870 mil mulheres alemãs tenham sido vítimas de estupro cometidos pelas tropas vitoriosas durante a guerra e o período da ocupação. Foto do Hitler
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Quase um milhão de mulheres alemãs foram estupradas por soldados das tropas que derrotaram o regime nazista — um crime em massa que, até o início dos anos 2010, não havia sido investigado com seriedade.
Pesquisas mais recentes mostram que, embora os soldados soviéticos estejam entre os principais responsáveis, eles não foram os únicos. No Ocidente, acusações que recaem sobre norte-americanos e tropas coloniais francesas acabam por encobrir responsabilidades muito mais amplas.
Escolher o agressor para sobreviver
No diário reescrito após a guerra e publicado com o título Uma Mulher em Berlim, uma jornalista de cerca de trinta anos descreve os meses de abril e maio de 1945 de maneira semelhante: hordas de soldados bêbados estuprando repetidamente as mulheres que encontravam. Segundo seu relato, as que ainda tinham forças tentavam identificar entre os estupradores aquele que fosse menos brutal, que ao menos pudesse protegê-las dos demais.
Após alguns dias, a autora — que falava russo razoavelmente bem — acabou se apegando a um dos soldados, unicamente por ele não bater nela, conversar com ela e demonstrar algum traço de afeto.
Muitos dos casos que os aliados do ocidente chamavam de “confraternização” nada tinham de consentimento: não eram sequer prostituições forçadas, mas simples reação de sobrevivência.
Governo do Hitler
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Apesar do mito persistente de que o alto comando soviético incentivava os estupros, Stalin chegou a proibir oficialmente a prática — ordem que era conhecida pelos soldados, mas amplamente ignorada. Ele temia que os abusos provocassem levantes entre os civis.
Como relatado por especialistas e testemunhas oculares da época, oficiais de patente inferior tinham pouco controle sobre suas tropas. Apenas alguns comandantes de alta patente, temidos por mandarem executar estupradores, conseguiam impor algum limite.
Soldados negros e coloniais: culpados “aceitáveis”
Os soldados norte-americanos foram orientados a evitar qualquer “confraternização” com a população civil alemã. Milhares de estupros já haviam ocorrido em território francês, como demonstrou a historiadora norte-americana Mary Louise Roberts.
Para lidar com a demanda sexual dos soldados, milhares de prostitutas foram deslocadas de Paris para cidades como Le Havre, por onde passaram 4 milhões de militares em apenas um ano. Muitas delas adoeceram rapidamente com infecções sexualmente transmissíveis.
Essa realidade preocupava o comando aliado, especialmente pelo risco à saúde dos próprios soldados. Diálogos com autoridades locais ajudaram a documentar o sofrimento dessas mulheres, ignorado à época.
As punições por estupro recaíam, em geral, sobre soldados negros, usados como bode expiatório. Eles também eram mais frequentemente denunciados, já que ficavam afastados da linha de frente, onde os abusos eram menos visíveis.
Na Alemanha ocupada, a impunidade era ainda maior, já que a polícia local não tinha autoridade sobre os militares estrangeiros. Os filhos nascidos de estupros — ou mesmo de relações consensuais — não podiam imigrar para os Estados Unidos com as mães. Os franceses, por outro lado, incentivavam o envio dessas crianças ao território nacional.
A imagem do soldado colonial como estuprador se consolidou especialmente entre os franceses, uma vez que as tropas africanas representavam a maior parte do contingente até o início de 1945. O plano do general De Gaulle de “branquear as tropas coloniais” fracassou, também pela falta de voluntários da França metropolitana.
Silenciamento das vítimas alemãs
Em 1944, a passagem das tropas francesas comandadas pelo general Juin pela Itália deixou um rastro de violência sexual, especialmente atribuída a soldados marroquinos. O termo marocchinate (algo como “marroquinadas”) surgiu para designar esses estupros.
O tema aparece no romance A Ciociara, de Alberto Moravia, e na adaptação cinematográfica dirigida por Vittorio De Sica. Há relatos confiáveis de que os estupros coletivos foram apresentados como “recompensa merecida” por alguns oficiais subalternos.
Após a guerra, as centenas de milhares de vítimas alemãs foram silenciadas. Muitas foram estupradas diversas vezes. Eram rotuladas como prostitutas, oportunistas ou recebiam apelidos depreciativos como Veronika Dankeschön (“Veronika Obrigadinha”), com as mesmas iniciais de VD — abreviação de doenças venéreas em inglês (venereal diseases).
Os soldados vitoriosos afirmavam seu domínio tomando o corpo das mulheres derrotadas, enquanto os homens alemães encaravam os estupros como uma perda de sua virilidade. Isso empurrou as vítimas ao silêncio e à repressão de seus traumas.
Para conter o número de gestações indesejadas, o aborto chegou a ser permitido temporariamente em algumas regiões. Em outras, era simplesmente tolerado. Registros médicos da época permitem aos estudiosos atuais estimar a dimensão desses crimes.
Suas marcas permaneceram na sociedade alemã: no medo transmitido às filhas nas décadas seguintes, como relata Miriam Gebhardt, e na fobia social dos estupros que emergiu quando a chanceler Angela Merkel decidiu abrir as fronteiras alemãs aos refugiados sírios e afegãos.
Como testemunhas da época costumavam dizer, “a guerra não apagará tudo.” Cabe agora às pesquisadoras e pesquisadores ajudar a sociedade a encarar esses fatos de frente.