O produtor e DJ Caio Muratore acaba de lançar seu primeiro álbum autoral, Buraco, já disponível em todas as plataformas digitais. O trabalho marca sua estreia pelo selo brasiliense Nice & Deadly, conectando a cena eletrônica de São Paulo à pulsação crua e inventiva do underground nacional.
Buraco é a trilha sonora de um centro urbano em colapso: um disco que narra, por meio do som, uma cidade marcada por ruínas, neon e caos. Criado com equipamentos limitados e estética intencionalmente bruta, o álbum carrega a urgência de quem produz à beira do travamento — mas transforma esse limite em linguagem.
O projeto tem direção e produção de Muratore, com colaboração de Zopelar, que atuou como mentor e parceiro criativo em momentos-chave da construção do álbum. A faixa “18GBRAM” nasceu desse processo de troca, estabelecendo uma ponte entre gerações e abordagens de produção.
Ao longo de suas 10 faixas, Buraco percorre colagens de samples, sintetizadores digitais e texturas distorcidas — reverberando tanto as raízes do house de Chicago e Detroit quanto a realidade crua do centro de São Paulo. É um álbum que soa como memória, mas também como urgência contemporânea. Batemos um papo com Caio a respeito da produção, ideias e mensagens do álbum.

House Mag: Caio, como surgiu a ideia do Buraco? Em que momento essa imagem de uma São Paulo em colapso começou a te atravessar?
Caio Muratore: Eu me mudei pro centro de São Paulo no começo de 2018 e foi quando comecei a realizar trabalhos colaborativos através do meu estúdio criativo, Solo.etc. De lá pra cá foi uma jornada intensa e muitas vezes confusa. É bem difícil se organizar no centro caótico da nossa cidade com milhões de coisas acontecendo à nossa volta. Mas, Buraco surgiu justamente quando as coisas foram se assentando e consegui manter uma prática de produção mais constante e focada. As músicas do álbum foram produzidas entre 2023 e 2024.
HM: Esse disco parece dialogar com uma cidade que adoece e sobrevive. Como isso se conecta com seu cotidiano, seus trajetos?
CM: Cresci e vivo num meio onde a realidade não parece se apresentar de maneira óbvia. Difícil de entender o porquê já que São Paulo é uma cidade, apesar de carregada com vida, visivelmente doente e com muitos problemas escancarados. O álbum pode também ter um caráter fantástico, mas tudo foi construído através de um processo de reflexão sobre meu dia a dia e o ambiente ao meu redor. É uma busca pelo que há de mais real, eu diria.
Desde o começo da Solo.etc, me preocupei em manter uma porta aberta pra rua, seja recebendo no estúdio ou criando eventos gratuítos. E me sinto sempre vivo no momento em que faço coisas óbvias como, por exemplo, andar nas ruas do centro de São Paulo. Esse contato real é um alimento necessário que aprendi com o tempo que preciso sempre estar correndo atrás.
HM: Você fala de um futuro que nunca chegou. Como enxerga o passado, o presente e o amanhã de São Paulo — como lugar e como cena?
CM: Eu penso assim: nosso país e nossa cidade tem muita história. Nada começou ontem. Estudar o passado é a maneira mais fiel que temos de tentar encontrar qualquer tipo de resposta para o nosso presente e futuro. Já existia uma cena aqui de música eletrônica muito antes de eu chegar. Respeito é estudar o que aconteceu para encontrar seu próprio lugar e, a partir daí, construir um futuro coletivo. Tem que chegar no sapatinho.
Eu colaborei de perto com a rádio Veneno no período da pandemia. Também dividimos o espaço onde a Solo.etc atuou durante alguns anos. A rádio era uma das poucas coisas rolando/abertas naquela época e tive a sorte de conhecer muitos artistas, cenas, festas e coletivos. Eu entendi que aquilo era uma grande escola e vivi tudo muito próximo e intensamente. Senti que entendi São Paulo naquela época, recebendo e conversando com gente do mundo inteiro.
HM: Quais sons você sente que ecoam essa decadência? E quais ainda mantêm a cidade viva?
CM: Morta: Qualquer barulho de obra.
Viva: O som do carro da pamonha.
HM: Qual o papel da cena eletrônica nesse cenário? Você vê nela um abrigo, uma resistência ou parte do problema?”
CM: Acredito que o papel de coletivos, produtores e agitadores é fundamental para resistência e evolução da nossa cena de música eletrônica, tanto artisticamente quanto profissionalmente. Sem eles nada existe. Mas uma cena organizada ou não, como qualquer grupo, pode fazer você se sentir parte e oferecer um abrigo, como também pode fazer você se sentir excluído e oferecer rejeição. Eu já senti de tudo rs. Mas acredito que essa lógica competitiva que segrega é muito mais resultado do nosso modelo econômico social do que qualquer outra coisa. Acabamos refletindo o que não queremos porque somos parte do problema. Cabe a todo mundo passar por isso e lutar juntos com muito amor pro que realmente interessa.
HM: O que você sente que mudou (ou não) nos últimos anos em relação a espaço, circulação e escuta?
CM: Falando especificamente de São Paulo, sinto hoje uma cena mais segregada, dividida em espaços menores e privados. Eu vivi a fase dos coletivos fazendo festas gratuitas nas ruas da cidade. Multidões tomando as ruas do centro de São Paulo, dançando nas madrugadas de viradas culturais. Hoje entendo que não faz mais sentido. Mas as festas tinham uma conotação política e social bastante presente. Eu sinto falta desse foco. Parece uma cena ainda mais despolitizada do que antes, com exceção de um grupo ou outro.
HM: O álbum é denso, cinematográfico, quase uma trilha de uma distopia urbana. Como você construiu esse som? Quais foram suas referências estéticas?
CM: Eu tenho esse lugar, feito principalmente com sobreposição de camadas e texturas, que eu consigo acessar através da música. É uma construção que está presente em todo som que eu faço. Um lugar comum que eu naturalmente alcanço. O processo do Buraco foi tentar democratizar um pouco mais esse lugar, esses sons, usando o padrão do house/techno como um guia. E o objetivo de chegar em tracks que funcionassem com som alto numa pista de dança.
Queria que os sons fossem uma trilha sonora que fizesse sentido com o lugar onde vivo. Que pudesse tocar na noite da São Paulo de hoje. Apesar da capa ser distópica, ela é só uma vitrine, uma porta de entrada para uma trilha sonora que deseja ser da vida real.
Minhas referências estéticas foram principalmente os quadrinhos, queria que a capa passasse a ideia de ser uma história, mesmo que só mostrasse um único quadradinho da narrativa toda.
HM: O álbum tem referências claras à house de Nova Iorque, Chicago e Detroit, mas em momento algum se limita a elas. Qual a importância dessas sonoridades para você e como elas se transformam ao passar pelo seu filtro?
CM: Tem gente que vê padrão como um limitador da criatividade. Eu aprendi com esses ritmos que eles são, na verdade, o oposto. Através do padrão você se comunica e se teletransporta para um universo muito maior do que o seu próprio. É isso que eu aprendi com o house, com o rap, com o dub, reggae, etc. Você não precisa ficar nessa busca incessante pelo fazer o diferente, você pode simplesmente fazer a continuação daquilo que já vem sendo construído, muito antes de você chegar.
As minhas inspirações sonoras foram principalmente do começo da música eletrônica em Chicago, Nova Iorque e Detroit. Artistas como Ron Hardy, Lil Louis, Robert Armani, Marcus Mixx, Gemini, K-Hand, Juan Atkins, Drexciya, etc. Até quem faz esse tipo de releitura recentemente como Theo Parrish, Delroy Edwards e Fernando Seixlack.
HM: Fala um pouco sobre os colaboradores e o que cada um trouxe para esse universo do disco.
CM: Difícil falar desse álbum sem mencionar o Zopelar. Ele foi meu mentor e peça fundamental para a construção do álbum. Tem também o trio da Nice & Deadly, Stenio, Lorrayne e Rassan, que apostou nas músicas e me ajudou com muita competência e organização. Também convidei o Kakubo, produtor de música eletrônica e designer, para comandar a direção de arte do disco com seu olhar único. Na sequência convidamos o talentosíssimo Ivo Puiupo para fazer as ilustrações da capa. E eu só tenho a agradecer a todos eles por me ajudarem a fazer meu sonho virar realidade.
HM: A faixa “18GBRAM” é fruto de uma troca direta com o Zopelar, que também acompanhou o desenvolvimento do álbum como mentor e colaborador. Como foi essa relação criativa e o que ela despertou em você?
CM: Zopelar me ajudou a chegar nessa sonoridade que eu queria: um house mais sujão, com som de fita, que lembrasse as primeiras produções. E a forma que encontramos foi criando um template no Ableton que emulasse todos esses instrumentos, hardwares, efeitos e que eu pudesse produzir só com um computador.
A faixa 18GBRAM foi o resultado de uma aula onde o Zopelar me ensinou a mexer na 303 da Roland Cloud usando um beat meu como base. No final da sessão, sentimos que tínhamos uma música pronta. Eu já tinha separado algumas tracks com a Nice & Deadly e essa especialmente chegou numa segunda leva junto com duas outras novas produções que completariam o álbum.
HM: Se São Paulo desmoronasse amanhã, o que você deixaria tocando nos escombros?
CM: Buraco. Mesmo com tudo destruído, ainda precisaria vender meu peixe.
HM:E se ela renascesse, como gostaria que fosse o primeiro som?”
CM: Buraco também. Apesar da capa preto e branca e do kickão quatro por quatro, espero que minha música consiga sempre despertar com afetividade e ser trilha sonora da vida, muito mais do que da morte.
Por redação
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