Palavra recém-nascida

João Guimarães Rosa inventava palavras. O vocabulário conhecido não era suficiente para dar conta do que ele queria dizer. E ele já falava diversas línguas, então por que não criar a sua particular? Assim, o autor de Grande sertão: veredas entrou para a história da literatura brasileira – e mundial – com a sua prosa diferenciada.

Muitas pessoas acham que existem palavras em excesso, e que a vida seria mais interessante com um léxico reduzido. Acreditam e inclusive vivem isso na prática. Mas Rosa pensava exatamente o contrário. Daí surgiram, na voz de seus numerosos personagens sertanejos, termos como “ensimesmudo”, alguém tão voltado para dentro que chega a ser mudo; “enxadachim”; “circuntristeza”, aquela tristeza que paira ao redor; “zombaz” e centenas de outros neologismos.

Uma palavra recém-nascida é de certa forma uma ideia nova, ou pelo menos um ângulo peculiar para se ler a realidade. Quando todos repetem sem parar os mesmos termos e expressões, falando ou escrevendo, eles se esvaziam de significado. É como uma melodia que se ouve até o fastio: deixa de comover.

Em um mundo onde comunidades inteiras se agarram a concepções antigas de política e sociedade, e parecem alegremente dispostas a saltar no precipício por vulgares fanatismos de museu, não fariam mal novos conceitos ou ao menos expressões que arejassem as discussões. Sem mais clichês viciados.

Acredito que, neste momento mesmo, muita gente está tentando abrir portas – antes que elas venham abaixo. “Certa ideia, que negrejava em mim, abriu as asas e entrou a batê-las de um lado para outro, como fazem as ideias que querem sair”, diz Bentinho, o narrador de Dom Casmurro, de Machado de Assis. É uma boa imagem, esse voo caótico de pensamentos e aspirações que não se concretizaram, mas estão prestes a tomar forma.

De qualquer modo, é benéfico dar valor às palavras e à riqueza que elas contêm. A realidade nem sempre colabora, é verdade. Há poucos dias, o Censo Escolar de 2024 revelou que apenas 49,4% das escolas públicas de educação básica, no Brasil, possuem bibliotecas ou salas de leitura para estudantes. Impressionante: mais da metade não contam com esses espaços.

Como estimular os mais jovens a pensar fora do lugar-comum, fora da repetição, sem lhes dar acesso às palavras? Como poderão criar sua própria linguagem?

Eu quase fico “ensimesmudo” com essas coisas.

LEIA MAIS COLUNAS DE LUÍS FERREIRA

quer receber notícias de Santa Cruz do Sul e região no seu celular? Entre no NOSSO NOVO CANAL DO WhatsApp CLICANDO AQUI 📲 OU, no Telegram, em: t.me/portal_gaz. Ainda não é assinante Gazeta? Clique aqui e faça agora!

The post Palavra recém-nascida appeared first on GAZ – Notícias de Santa Cruz do Sul e Região.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.