Viver dói

A vida por aqui continua. Cruel e bela, como sempre. No final de semana, fez o primeiro frio do ano. Mas agora, entre chuvas e sóis, temos o luminoso céu de abril sobre nossas cabeças. Nas ruas, a gurizada das escolas imprime normalidade ao cotidiano. O trânsito segue complicado, as obras na cidade andam devagar e há muitos planos e promessas.

O mundo mantém sua rota. Intensamente. Consumo, descarte, esquecimento. Nada vale por muito tempo. É do feitio de nossa humanidade esse talento para a pouca memória. Individualistas que somos, só guardamos de fato o que nos toca a alma. E em nossa defesa, podemos dizer ao menos que não nos envergonhamos de nossas dores. Mesmo as que parecem pequenas aos olhos dos outros.

Temos estado tristes desde que você partiu. Nosso Bento, nosso gato frajola querido. Comum como todos os frajolas. Sem nada de especial, sem glamour, sem pedigree, sem pose, sem fama. Só o nosso Bento. Você que gostava de rolar pelos terrenos da vizinhança e trazia para casa, pendurados nos pelos, pedaços de folhas, sementes, terra e papel velho. Que se apresentava prontamente quando ouvia algum barulho na cozinha. E que pedia colo depois do jantar, a testa colada na barriga do seu pai humano.

Você se foi numa noite de sábado e nos deixou de corações partidos. Como explicar a dor pela perda de um bichinho? Quem entende, entende. Quem não entende, talvez não entenda nunca. Por que machuca tanto a ponto de nem conseguirmos falar sobre? Pelas 48 horas de agonia durante as quais você se manteve vivo, sofrendo? Pelo seu desespero em tentar levantar quando ouvia a voz do Maurício? Por demorarmos para perceber que algo estava errado naquele pós-operatório? Por termos preferido ser civilizados e tolerantes do que ter raiva?

Sentei para escrever esta coluna sobre o Donald Trump e suas peripécias irresponsáveis e só conseguia pensar que precisava escrever sobre o que me aperta o peito. E choro como criança. Choro pelo gatinho que perdi e também choro por mim. Choro pelo gatinho comum e anônimo que na verdade eu sou.

Choro pela minha insignificância, minha impotência. Choro por ser lembrada, mais uma vez, de que não passo de uma minúscula partícula de poeira cósmica cuja consciência vai se esfacelar ali adiante para se transformar em outra coisa. Como aconteceu com nosso Bento. Como acontece com tudo que existe. O tempo todo.

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