Preta Tia Simoa: a heroína negra que articulou motins contra a escravidão no Brasil e tem memória resgatada pelas novas gerações


Simoa foi uma das lideranças da Greve dos Jangadeiros, que paralisou o tráfico de pessoas no porto da antiga Praia do Peixe, em Fortaleza. A cearense foi peça decisiva para o processo de abolição pioneiro do estado. A heroína negra que articulou motins contra a escravidão no Ceará: conheça Preta Tia Simoa
Preta Tia Simoa tinha no nome muito do que era: uma mulher preta conhecida em sua comunidade. Bem articulada e respeitada, ela era ‘tia’ de muitos.
A cearense foi uma negra liberta que teve papel fundamental na abolição e na luta pela liberdade de negros e negras do estado. Ao lado do marido, José Luís Napoleão, liderou a “Greve dos Jangadeiros” nos dias 27, 30 e 31 de janeiro de 1881 em Fortaleza.
O episódio colocou fim no embarque de escravizados no porto da antiga Praia do Peixe (região hoje do Poço da Draga, na Praia de Iracema) e fortaleceu a abolição da escravidão no Ceará, que aconteceu em 1884.
Sem foto oficial, a memória de Preta Tia Simoa vem sendo resgatada pelas novas gerações no Ceará.
Retrato do artista visual Helder Carlos Xavier de Araújo, o ‘Blecaute’.
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Apesar de estar à frente de um movimento importante para o estado, Preta Tia Simoa teve seu nome esquecido por muitos anos. O resgate de sua história é uma reviravolta recente, de cerca de 15 anos, aponta Cícera Barbosa, professora de História da Rede Estadual do Ceará:
“A Preta Tia Simoa é definida, primeiro, pela cor. O ‘Preta’ não é o nome dela, mas ele está para convocá-la, para defini-la. O ‘Tia’ como essa mulher que cuida. Quantas mulheres negras são cuidadoras, mesmo sem conseguir formar suas famílias, trabalhando em outras esferas? Ela vai protagonizar esse processo que não é só de abolição, é de liberdade. Ela tem uma autoridade que articula naquela região a liberdade das pessoas”, explicou ao g1.
A liderança de Simoa fez com que o tráfico interprovincial (entre províncias do Brasil) fosse paralisado no porto da Praia do Peixe. Para isso, ela usou de sua posição na comunidade para fazer um levante e juntar a ‘negrada’ na greve.
De acordo com a professora Cícera, a participação de outras mulheres também foi essencial, especialmente daquelas que exerciam papéis na economia da cidade, como cozinheiras, doceiras e quituteiras.
“Da chegada dos europeus em 1500 até 1888 você tem a naturalização de venda de pessoas. De 1888 para 2024 são só 136 anos que você não pode vender pessoas como eu”, diz Cícera Barbosa.
Cícera é uma das articuladoras cearenses que resgata a história de Tia Simoa e outras mulheres fundamentais para a memória do estado. Junto de Aline Furtado, a professora organizou uma exposição com personalidades apagadas da história cearense. Preta Tia Simoa, Ana Souza, Dragão do Mar são alguns dos nomes da mostra “Anas, Simôas e Dragões: Lutas Negras pela Liberdade”.
A mostra faz parte de uma programação maior dos museus do Complexo Dragão do Mar que acontece em homenagem ao Dia da Mulher Negra, celebrado em 25 de julho (confira os detalhes no fim da reportagem).
Exposição resgata a história de personalidades negras importantes para a abolição no CE.
Divulgação
O Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha nasce a partir do movimento de mulheres na década de 90 que decidiram se organizar para lutar por políticas públicas e melhorias na qualidade de vida de mulheres negras.
Em 1992 o grupo organizou o primeiro Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas em Santo Domingo, na República Dominicana.
Desde então, a data é pensada para trazer conhecimento sobre a vida da mulher negra e suas necessidades. No Brasil, o 25 de julho também celebra o Dia Nacional de Tereza de Benguela e, especificamente no Ceará, Dia Estadual da Preta Tia Simoa, instituído em 2021.
“O 25 de julho é uma referência desse movimento de conquistar a autonomia, direitos e liberdade. A exposição foi uma forma de dar protagonismo a esses sujeitos de outros tempos, trazer a memória do povo preto para desconstruir essa história de que não tem preto no Ceará”, colocou Cícera.
Para a pesquisadora, a questão da ancestralidade é central nas vivências de mulheres negras cearenses. Já um dos principais problemas que a população negra ainda enfrenta, segundo Cícera, é a autoidentificação. E é por isso que ela faz o resgate de personalidades negras tanto na arte quanto na sala de aulas:
“Sou professora de escola pública há 14 anos. A maior parte dos estudantes são negros, a maior parte das pessoas atendidas pelo serviço público são negras, a maior parte em adoecimento mental (também). O racismo, a pobreza, adoecem. Mas, a gente tem inventado várias possibilidades de vida aqui”.
‘É difícil rastrear a história de uma mulher’
No Cariri, mulheres negras se inspiraram em Preta Tia Simoa e criaram um coletivo para lutar por direitos para esta população.
Arquivo pessoal/Karla Jaqueline
Ainda não foram encontradas fotos oficiais, certidões de nascimento ou óbito, matérias em jornais, ou outras informações mais específicas sobre a vida de Preta Tia Simoa. Assim como ela, outras mulheres cearenses também foram esquecidas pela história.
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Só é possível conhecer um pouco de Simoa a partir do que seu marido, José Luís Napoleão, documentou. E é esse trabalho de ‘formiguinha’ que Karla Jaqueline Vieira começou a fazer em 2012 no Cariri cearense.
A historiadora defendeu a monografia ‘“HERÓIS” NO CATIVEIRO: discursos e silêncios no jornal Libertador sobre o protagonismo de José Napoleão e Preta Tia Simoa na luta abolicionista no Ceará (1881-1884), trabalho seminal no estado sobre o tema. A ligação com Simoa foi tão especial que ela e outras 13 mulheres do Cariri formaram, na época, o grupo Pretas Simoa em homenagem à heroína.
O interesse pela história de Simoa começou quase que por acaso. Karla queria fazer um trabalho que preenchesse as ausências que sentia tanto no movimento negro quanto no movimento feminista: o foco em questões específicas da mulher negra.
Foi lendo o escritor Raimundo Girão que a historiadora se atentou em uma citação sobre Tia Simoa:
“Raimundo Girão falava que o líder da Greve dos Jangadeiros foi José Luiz Napoleão e que ele contou com a ajuda da Preta Tia Simoa, que era a esposa dele, e que não teve o seu nome registrado na história como devia”, explicou Karla ao g1.
A falta de registros sobre a personalidade dificultou a pesquisa de Karla Jaqueline. Ela buscou informações em cartórios, cemitérios e relatos de famílias antigas. O que conseguiu agrupar, no entanto, tem servido para aprimorar o conhecimento sobre Tia Simoa no estado:
“Encontrei uma certidão de casamento onde fala o nome completo dela e da mãe dela. Ela é Simoa Maria da Conceição. Ficou conhecida como Preta Tia Simoa porque ela era uma representação de práticas culturais de matriz africana em Fortaleza. Isso deu a ela o que era considerado um prestígio: essa coisa da tia, que aproximava, tornava uma pessoa negra mais popular. Ela tinha esse poder popular”.
Certidão de casamento digitalizada de Preta Tia Simoa e Napoleão.
Arquivo pessoal/Karla Jaqueline
Com esse poder, Tia Simoa levou para frente o motim contra a escravidão e impediu que ela e outros do grupo de resistência fossem presos por desordem. Em 1881, o Ceará já recebia movimentos de sociedades libertadoras, mas a Greve dos Jangadeiros é considerada um dos episódios mais importantes e ‘radicais’, de acordo com Karla Jaqueline.
“Quando os policiais viram que não ia ter condição de prender todo mundo e que tinha o apoio, inclusive, da elite local, eles voltaram atrás e não prenderam ninguém. Ela tinha esse poder de mobilizar, de ter a confiança das pessoas”, comentou Karla.
A historiadora também conseguiu achar o testamento de Napoleão, onde ele declarou que havia se separado de Simoa. Eles não tiveram filhos. Preta Tia Simoa, já no fim da vida, foi acolhida pela família de César Cals de Oliveira Filho, ex -governador do Ceará, e morreu esquecida, sem nome no jornal como outros abolicionistas da época.
“É muito difícil a gente rastrear a história de uma mulher, ainda mais negra. No caso dela houve um processo de apagamento. Foi intencional (…) É um cenário muito triste. Não é algo que permaneceu com a história dela. Ela é um símbolo do que acontece com mulheres como eu”.
Historiadora reflete sobre apagamento de mulheres negras da história do Brasil.
Fabulando rostos, histórias e o futuro
Artista cearense fala sobre como foi fabular o rosto de Preta Tia Simoa: ouça o relato de
Simoa não tem uma foto oficial, mas as novas gerações têm usado a arte para fabular a face da mulher negra que foi fundamental para a abolição no Ceará.
O retrato de Preta Tia Simoa que abre esta reportagem foi feito pelo artista visual Blecaute, formado em Filosofia e autodidata em várias técnicas como lambe lambe, muralismo, graffiti, pintura e colagem. Em entrevista ao g1, ele relata como foi pensar o rosto de Simoa:
“Busquei através dessa obra, além de criar uma imagem que representasse Preta Tia Simoa, eternizá-la através do viés da abundância, da riqueza e da felicidade. Assim, utilizei diversos elementos dourados como brincos, colar e grillz em seus dentes – representando a vida para além da luta, da escassez, do medo”.
A obra de Simoa faz parte de um dos de seus projetos em que também retrata outras personalidades negras, tanto do passado quanto do presente. Para Blecaute, a arte deve contestar a linearidade da história oficial e hegemônica:
“Ressalto a importância de brigar por nossos imaginários imagéticos. Acredito que todo ato é político. Assim, antes de artista, sou um agente político que luta por uma narrativa que vai muito além da miséria e da luta, mas de prosperidade e abundância”.
Artista de Fortaleza resgata memória de Preta Tia Simoa.
Divulgação
Aline Furtado, também curadora da exposição “Anas, Simôas e Dragões: Lutas Negras pela Liberdade”, conta que o projeto relembra os 140 anos da Abolição da Escravidão no Ceará, celebrado em 25 de março. A ideia, segundo ela, é fazer uma reflexão crítica das datas que celebram conquistas negras e expandir o debate para além de março e novembro (Mês da Consciência Negra).
“Tinha um desejo e um entendimento de que a data era muito importante, mas que a gente precisava fazer uma reflexão crítica de como ela é tratada no Estado e do que ela reverbera para os nossos corpos. Muitas vezes, essa coisa da vanguarda, da alcunha da terra da luz, tudo isso é usado também contra as populações negras, colocando um discurso de negação que é: não existem negros no Ceará”, comentou ao g1.
Tanto a exposição quanto as outras programações em alusão ao dia 25 de julho têm o objetivo de celebrar as personalidades negras de forma feliz e positiva – fugindo da narrativa única de dor e sofrimento repassada ao longo dos anos.
As pessoas negras sempre tiveram um papel relegado ao esquecimento. É como se elas não tivessem existido dentro dessa dinâmica de resistência e de luta por liberdade. A narrativa oficial e a história tratam isso numa outra perspectiva. Tudo que a gente lê sobre a abolição no Ceará, tem um protagonismo branco. A única figura que rompe nessa historiografia oficial é o próprio Dragão do Mar. Todas as outras figuras e personagens ficaram relegadas ao esquecimento. Como vamos emancipar essas histórias?
📌 Programação
Confira a programação gratuita que celebra o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra e o Dia Estadual da Preta Tia Simoa no Museu da Cultura Cearense (MCC) e no Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC-CE):
No dia 27, às 15h30, na Varanda dos Museus, o MCC realizará a vivência educativa “No Arrasta-pé do Forró Ancestral”, com o bailarino e professor Éder Soares. Herdeiro de um legado forrozeiro familiar, é a terceira geração da família e foi quem didatizou a metodologia nomeada de Forró Ancestral.Com acesso livre, a participação é gratuita mediante inscrição via formulário disponibilizado pelo museu ou na administração do MCC.
No dia 28 (domingo), entre 13h e 18h, o MAC-CE traz mais uma atividade em alusão à efeméride do dia 25, e que marca o encerramento da exposição “Anas, Simôas e Dragões: Lutas Negras pela Liberdade”. Na programação, música e proposições interativas com artistas, entre as quais uma oficina de colagem e fotografia para a criação de poéticas racializadas, com Alexia Ferreira, trancismo do estúdio Nzinga, campeonato de videogame, som com DJs e fala pública de Hector Isaias sobre “Expografia como jogo de (des)montar em ‘Anas, Simôas e Dragões: Lutas Negras pela Liberdade’”.
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