Feira do livro: hora de virar a página

Ao final de abril de 2024, a santa-cruzense Marli Silveira vivia em expectativa: ela era a escritora homenageada da 35ª Feira do Livro, então em vias de ser aberta. Mas a emoção do contato com o público foi, literalmente, por água abaixo: ela mal pôde se deslocar até a Praça Getúlio Vargas, no centro de Santa Cruz do Sul, para breve atividade no evento, pois as fortes chuvas e a ventania inviabilizaram qualquer congraçamento. Já em meio à enchente, a feira foi cancelada.

É com expectativa redobrada (e um tanto de ansiedade), portanto, que ela agora vivencia novamente a proximidade do evento. Uma vez que a festa das letras do ano passado não se concretizou, os organizadores optaram por manter intacta boa parcela do programado em 2024. A Feira do Livro de 2025 segue como a 35ª edição, Marli permanece como a escritora homenageada, e o professor Elenor José Schneider é a personalidade incentivadora da leitura, como anunciado durante o lançamento oficial, no dia 6 de março. O evento está programado para o período de 1º a 10 de agosto.

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Atual presidente da Academia de Letras de Santa Cruz do Sul e a primeira (e até agora) única mulher da região a integrar a Academia Rio-grandense de Letras (ARL), Marli é uma das principais articuladoras do ambiente literário e cultural da área central do Estado. Graduada em História, mestre em Filosofia e doutora em Educação, é poeta, ensaísta e professora, atuando em diversos projetos de extensão.

Em 2024, na véspera da feira, ela lançara um ensaio filosófico: Psicagogia da experiência estética: o sublime existencial, obra que tivera entusiástica recepção de parte de leitores e críticos respeitados. Agora, já em meio aos preparativos para sua participação efetiva na Feira do Livro, antecipa, em entrevista à Gazeta do Sul, alguns de seus projetos para este ano.

Entre eles, como enfatiza, duas obras que deverão vir a público durante a realização do evento, em agosto, um deles traduções de poemas de autores japoneses, com comentários, em parceria com o editor Roberto Schmitt-Prym. E uma exposição que estará em cartaz em abril. Confira a entrevista, à direita.

Entrevista

Quase um ano se passou desde as enchentes do ano passado que levaram ao cancelamento da feira. O que fica de memória e reflexão daquele período?
A experiência das enchentes de 2024, de abril e maio, foi avassaladora. As imagens, as cenas vistas, presenciadas ou vividas por milhares de pessoas no Estado, continuam inscritas nas nossas memórias. Corroboram, as imagens/experiências, o que já se vislumbrava, pois muitos especialistas, entidades e organismos comprometidos com o meio ambiente alertavam e continuam a alertar: a nossa relação com a natureza tem sido de exploração, de domínio, ancorado no que chamamos de razão instrumental. A vida fica subsumida ao processo de objetificação das relações, do manejo dos recursos e, inclusive, dos próprios seres humanos.

O processo de distanciamento da natureza, se assim podemos dizer, constituindo uma “natureza humana” separada do todo, permitiu e continua permitindo práticas predatórias e uma visão encurtada do que seria propriamente uma existência comprometida com a sustentabilidade. Se tivéssemos prestado um pouco mais de atenção aos povos e tradições que mantêm outra relação com a natureza e com a vida, não estaríamos à beira do caos ambiental, aqui não querendo ser catastrófica, porque, no fundo, o que está em jogo é a própria existência. Ou ouvimos o clamor da vida, no seu sentido ampliado, assumindo nossa responsabilidade e cobrando outra perspectiva de desenvolvimento que não seja atrelado ao lucro barato e inescrupuloso, ou fracassaremos como humanidade. Não temos como voltar ao ponto zero, mas podemos interromper, ainda acredito, a escalada para o precipício.

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O que os eventos climáticos do ano passado deixam como conclusões?
Tem uma frase do Walter Benjamin que traduz, pelo menos em parte, o que estamos passando, podendo ou não funcionar como uma espécie de lembrete lançado no horizonte e que não se cansa de nos sacudir: “se perdermos, sequer os mortos estarão a salvo”. É uma das frases mais emblemáticas tensionadas a partir do espectro do nazifascismo, da derrocada dos valores que nortearam um certo rito de humanidade. Se o nosso projeto de humanidade falhar, difícil dizer o que ainda é possível, a própria história e a maneira como se estabelecem os vínculos ajeitados pelos narradores do tempo serão quebradas. Se admitirmos que a saga de Odisseu é/foi também uma luta contra o esquecimento, pela preservação da memória e compreensão da condição frágil humana (frágil da vida), o fracasso da nossa tentativa implicará na destruição da própria palavra que nos sonhou melhores. 

Qual a expectativa para enfim poder curtir essa honraria com os leitores?
Em algumas oportunidades expressei a minha alegria em ser e ou estar na condição de escritora homenageada, em uma feira que foi se realizando aos poucos, é assim que sinto, como um desdobrar calmo, acolhido da poesia do momento oportuno. Também, me sinto responsabilizada pela escolha, pelo que a comunidade, os leitores esperam. Tenho absoluta certeza de que teremos uma belíssima 35a Feira do Livro e uma grande 1a Festa Literária Internacional. Que a minha presença, a minha participação na Feira do Livro seja capaz de contribuir com a sensibilização leitora, apoiando ações, atividades e projetos que tenham por mote a formação intelectual, a fruição literária e o cultivo da humanidade.

O que está em teu radar, em termos de produções ou de projetos?
Alguns projetos e produções inéditos poderão ser conhecidos na Feira do Livro. Em breve, lançarei um novo livro, Corpos ardidos, que também será apresentado na Feira do Livro. Outra obra está sendo escrita exclusivamente, em parceria com o editor Roberto Prym, para ser lançada na Feira do Livro. Trata-se de uma obra poética de tradução, poemas de autores japoneses, com comentários. Outro projeto é a realização da exposição Ímpares, que em breve será divulgada, reunindo artistas e fazedores de cultura. Entre o final de 2025 e início de 2026, pelo projeto Biblioteca da Academia Rio-grandense de Letras, sairá um novo título poético, chegando a todas as escolas públicas do Estado, demais bibliotecas, feiras e eventos literários. Além do mencionado, mantenho também minha produção acadêmica, escrevendo para revistas e colaborando com projetos parceiros.

Por fim, que recado deixas a leitores em torno da importância da leitura?
Ler é um gesto de lentidão, é uma prática de si. Quando lemos, estendemos o tempo no exato instante do que acontece, do que nos acontece, desdobrando uma experiência menos fluida do transcurso. Percorremos uma região intelectual, mas que atravessa nossa existência no mundo. Diante da velocidade imposta pelo ritmo alucinado do presentismo e da constante fragilização da nossa relação qualificada com o tempo/espaço, a leitura, a dedicação à formação e ao cultivo de valores e práticas aderentes ao repertório da vida comum, compartilhada, implicam-se do que de mais sublime pode nos amparar: construir uma vida justa, bela e guiada pelo pisar leve; um jeito de morar em companhia, tecendo histórias porosas de muitos.

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