O plano era acabar com o Brasil: conheça o livro de Nelson Ruben Adams Filho

Há 200 anos, quando o Brasil recém havia se tornado independente de Portugal, quase que um plano do então presidente das Províncias Unidas do Prata, que compreendem a atual Argentina, Manuel Dorrego, teria colocado por terra a unidade da nova nação. Quem ilumina essa situação, entre obscura e enigmática, da história da América do Sul é o jornalista e historiador gaúcho Nelson Ruben Adams Filho. No livro Guerra Cisplatina: os planos das Províncias Unidas do Prata de tomar e ocupar Santa Catarina e torná-la República, lançado em 2024, ele detalha esse projeto mirabolante, do qual inclusive localizou o tratado original.

Dorrego firmou tal documento com um alemão, dom Frederico Bauer (ou Bawer), que se apresentava em Buenos Aires como representante de tropas de mercenários alemães, então estacionadas no Rio de Janeiro, a serviço do imperador Dom Pedro I, e ainda com o ministro Juan Ramon Balcarce, militar que fora governador da Província de Buenos Aires.

LEIA TAMBÉM: Parque da Oktoberfest recebe a 18ª Exposição Regional de Orquídeas

A ideia era um tanto incongruente: Bauer retornaria ao Rio, insuflaria os soldados alemães, que abandonariam seu posto junto ao império brasileiro para seguirem em navios rumo à capital argentina. Dali, seriam novamente embarcadas para voltar até Desterro (a atual Florianópolis), a fim de ocupá-la. O passo seguinte seria tornar a província de Santa Catarina independente, e transformá-la em República.

Não bastando, cogitava-se inclusive fomentar mudança semelhante em São Paulo, na Bahia, em Pernambuco e até na província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Se a evolução do quadro assim o exigisse, mesmo Dom Pedro I poderia ser aprisionado (ou até assassinado).

Seria, em grande medida, uma espécie de retaliação, ou de revanche, contra o fato de o Brasil persistir na ocupação da Província Cisplatina, o atual Uruguai, e de manter o bloqueio naval na entrada do Rio da Prata.

O tratado foi firmado ao final de 1826, mas Dorrego acabou tendo percalços já no ano seguinte, sendo destituído e, na sequência, fuzilado. Com isso, embora supostamente algumas etapas do plano tivessem sido efetivamente iniciadas, tudo caiu por terra. E, por sinal, a própria Guerra Cisplatina chegou ao fim, a partir da intervenção inglesa. Isso levou à declaração de independência do Uruguai e do compromisso de Brasil e Argentina, os dois contendores, de zelarem pela harmonia e pela paz na região do Prata e no Sul da América.

Adams recupera a passagem de ousadia na qual a atual Argentina efetivamente cogitou alterar para sempre os rumos do Brasil, e de implodir o único império alguma vez existente na América do Sul. Esse movimento republicano, espalhando as luzes da Revolução Francesa pela região, poderia ter sido iniciado em Santa Catarina. Ao menos era o plano.

História com lupa

Jornalista por formação, junto à PUC/RS, Nelson Ruben Adams Filho atuou por 43 anos nessa atividade. Em 2013, passou a se dedicar à área afim da História, bacharelando-se pela Uninter, em Curitiba. Desde então, direciona para os estudos históricos seu faro de investigação e de pesquisa antes desenvolvido na comunicação social. Em sua produção, tem se ocupado em especial de elucidar fatos e acontecimentos da região na qual reside, em Torres e o Litoral Norte gaúcho, bem como iluminar passagens pitorescas do passado nacional. É o caso, por exemplo, do livro A maluca viagem de Dom Pedro I pelo Sul do Brasil, de 2016, no qual resgata a única visita efetivamente realizada pelo primeiro monarca brasileiro ao extremo sul do País, durante a Guerra Cisplatina, em 1826.

A história como dever

A época da Independência do Brasil tem rendido assuntos com os quais o jornalista e historiador gaúcho Nelson Ruben Adams Filho ocupou-se em vários livros. Além do recém-lançado volume no qual resgata o plano do governo das Repúblicas Unidas do Prata de tomar e ocupar Santa Catarina, e de transformá-la em uma República, outros fatos pitorescos mereceram sua atenção.

Uma de suas contribuições é o livro A maluca viagem de Dom Pedro I pelo Sul do Brasil, também no contexto da Guerra Cisplatina, lançado em 2016. Nele, descreve os 37 dias durante os quais o imperador brasileiro decidiu conferir pessoalmente o ânimo das tropas no palco dos acontecimentos, na fronteira do Rio Grande do Sul com a Cisplatina, hoje Uruguai.

Dom Pedro I chegou com armada de 13 navios no dia 29 de novembro de 1826 à Baía de Canasvieiras, litoral de Santa Catarina. De lá, seguiu por terra, a cavalo, via Torres e Tramandaí, até Porto Alegre, perfazendo 500 quilômetros em sete dias. Depois seguiu até Rio Grande. E ali recebeu a notícia de que, na Corte, sua esposa, dona Leopoldina, falecera no dia 11 de dezembro de 1826. Dom Pedro I só desembarcaria no Rio no dia 15 de janeiro de 1827.

LEIA TAMBÉM: Concurso de soberanas da Lifasc terá nove candidatas à corte

Entrevista

Em que momento e a partir de que circunstância o senhor se deparou com esse tratado ou essa pretensão do governo de Dorrego, pelas Províncias Unidas do Prata, de ocupar Santa Catarina? O que o levou a essa pesquisa?

Embora eu já possuísse algum conhecimento sobre a Guerra Cisplatina, oriundo das pesquisas para meu livro A maluca viagem de Dom Pedro I pelo Sul do Brasil (com duas edições esgotadas), o tema em foco veio quase ao acaso. Confesso que não tinha conhecimento, mas logo interessei-me principalmente por enfocar Santa Catarina e a minha participação, com muita honra, no Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, do qual sou membro. O tema praticamente levou-me às pesquisas e à obra. Foi um dever! Ainda mais quando percebi que o tema era praticamente desconhecido pela historiografia catarinense.

Qual teria sido a pretensão das Províncias Unidas do Prata com tal projeto? Retaliação em virtude da presença brasileira em Sacramento?

Parece-me que o plano de tomar e ocupar Santa Catarina, e torná-la República, fazia parte de uma espécie de “combo de ações militares” do governo Dorrego. Junto ao plano estava o sequestro do Imperador Pedro I, a sublevação dos soldados alemães no Rio de Janeiro, a posterior ocupação do Rio Grande de São Pedro, de São Paulo e do restante do Brasil. Seria a derrubada da Monarquia dos Bragança e o fatiamento do Brasil em Repúblicas. Por estas razões, não me parece ser apenas um revide à tomada da Colônia de Sacramento.

Era um plano algo mirabolante, não? O que teria motivado os mercenários alemães (ou ao menos alguns de seus emissários) a também se envolverem nesse projeto?

Havia um descontentamento generalizado entre as tropas de mercenários alemães. Pelos castigos disciplinares impostos, a que eles não estavam acostumados (até porque muitos nem militares eram, oriundos das prisões dos condados); pelo atraso no soldo e na defasagem do dinheiro e da moeda recebida; pelos baixos valores em comparação ao oficialato e também pela exploração dos oficiais ao cobrar juros abusivos dos empréstimos que faziam à soldadesca; também ao fato de terem oficiais superiores de outras procedências, como italianos e portugueses. Tudo isto constituiu o caldo que resultou na revolta, acrescido do consumo de bebidas alcoólicas e da falta de comando.

O senhor menciona que os ideais republicanos, na época pós-Revolução Francesa, já se impunham na América do Sul. Esses ideais de certa maneira poderiam ter inspirado esse projeto ousado?

Com certeza o Iluminismo, com o fim do Absolutismo e da Monarquia subjugada pela República, e seus componentes, como a Maçonaria, serviram de fonte inspiratória a este projeto. Também a visão pessoal de Dorrego, pois Rivadávia, seu antecessor, não aderiu ao plano. Rivadávia era, digamos, “mais conservador” que Dorrego.

LEIA TAMBÉM: No BBB 25, Renata e Aline discutem após a chegada da sister da Vitrine do Seu Fifi

A presença alemã em Santa Catarina ainda era praticamente incipiente naquele momento, não é? Teria havido algum clima, por assim dizer, para uma participação de mercenários alemães nesse processo?

Sim, pelos relatos que se tem de diversos viajantes e militares, como Carl Seidler, a presença alemã em Santa Catarina era ínfima. Somente em 1829 eles irão chegar em contingente e com objetivo de colonização. Embora em 1828, com o final da guerra, muitos soldados tenham sido destacados para Santa Catarina à espera ou de retorno à pátria, ou pela dissolução do Corpo de Estrangeiros, o que efetivamente ocorreu em 1830. Boa parte deles permaneceu em território catarinense, outra migrou ao Rio Grande do Sul (para as colônias de São Leopoldo e de Torres). 

Houve até mesmo referência a uma possível prisão ou assassinato de Dom Pedro I. Esse risco teria mesmo existido?

Esta ação já havia sido proposta pelo corsário César Fournier ao presidente Bernardino Rivadávia, que a recusou sob a alegação de que seria “desonrosa”. Dorrego, dentro do seu “combo de estratégia militar” para a guerra, aceitou-a. Planejou-a com Fournier e despendeu dinheiro para a empreitada.

Entrevistei em Montevidéu o tetraneto de Fournier, Enrique Puig, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Uruguai, que corrigiu partes desta narrativa e acrescentou outras (elas estão no meu livro). Fournier era destemido, ousado e não se intimidava perante os perigos e desafios de uma empreitada como esta. O plano era sequestrar Dom Pedro num trajeto da praia de Sepetiba (os detalhes estão no livro) e levá-lo à força para Buenos Aires. A outra versão, de que ele seria convidado a ir até lá, em plena guerra, para ser recebido, desfilar com honras pela cidade e depois ser preso, parece-me fantasiosa. Fico com a primeira versão por parecer-me factível.

LEIA MAIS DE CULTURA E LAZER

quer receber notícias de Santa Cruz do Sul e região no seu celular? Entre no NOSSO NOVO CANAL DO WhatsApp CLICANDO AQUI 📲 OU, no Telegram, em: t.me/portal_gaz. Ainda não é assinante Gazeta? Clique aqui e faça agora!

The post O plano era acabar com o Brasil: conheça o livro de Nelson Ruben Adams Filho appeared first on GAZ – Notícias de Santa Cruz do Sul e Região.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.