Não verás país nenhum

Quando despontaram as primeiras imagens das tipuanas degoladas, de pronto lembrei-me do romance Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão. E lembrei também a síntese de Gabriel Garcia Márquez: tudo que a literatura conta já aconteceu ou ainda vai acontecer. O romance de Brandão foi publicado em 1981 e meus alunos de Letras o leram em 1983, derivando ricas reflexões que guardo até hoje.

Conheci pessoalmente o autor, que era assíduo participante da Jornada de Literatura de Passo Fundo. Paulista de Araraquara, nasceu em 1936 e integra um grupo de excelentes romancistas contemporâneos como Autran Dourado, Osman Lins, Antônio Callado, Lygia Fagundes Telles, para citar alguns.

O romance em questão trata de cenário assustador. O narrador Sousa, professor de História exonerado e aposentado, imagina uma grande cidade, São Paulo, vinte ou mais anos adiante, ou seja, nas primeiras décadas do século 21. Toda a cidade é vigiada pelo Esquema, sob o comando de Civiltares. As pessoas circulam usando máscaras, não podem andar livremente, há opressão, extremo autoritarismo, a história é falseada ou adaptada aos interesses da ordem, as casas são invadidas a pretexto de controle e vigilância. As aulas do professor Sousa são gravadas para ver se nenhum assunto contrário à ordem circulava entre os alunos.

Nessa grande cidade, não há mais árvore alguma, o calor é insuportável, no país todo os rios estão secos, água para beber vem da urina reciclada. A comida é artificial, cheia de elementos radioativos, as mulheres se tornam estéreis, unhas caem, ossos amolecem, nega-se a ciência, a imprensa é censurada. Cadáveres são carregados em caminhões e despejados em valas comuns. O clima do lugar arrasa com qualquer possibilidade de vida. O calor é insuportável.

O país inteiro é desmatado, o Esquema até comemora a derrubada da última árvore da Amazônia, que vira deserto e se torna atração turística para passeio dos abonados. Somem os peixes, as aves, as frutas, os insetos, nada consegue sobreviver. As pessoas, desoladas, submissas e alienadas, não mais conseguem reagir, são derrubadas pelo calor e pela opressão.

A obra é uma fantasia, mas quantos fatos já se concretizaram. Dá uma tristeza ver quem defenda o abate sem dó e sem consciência das árvores, ver a poluição das águas e da atmosfera. Um depoimento estarrecedor ouvi de uma pessoa a propósito da devastação provocada pelo rio Pardinho na tragédia de maio. Quis me convencer de que tudo aconteceu por causa das árvores existentes nas margens.

Há um poema bem romântico de Olavo Bilac, intitulado “A pátria”. Exalta ao máximo a beleza e a riqueza do país. O segundo verso diz: Criança, não verá país nenhum como este! E cita os encantos do céu, do mar, dos rios, das florestas, da vida abundante das aves. O título de Ignácio de Loyola Brandão se corta pela metade, porque essa beleza se tornou sofrimento, desesperança e dor.

Que os lutadores pelo verde da vida não se cansem jamais. Os desafios só tendem a aumentar, porque a fome de ganhar não cessará tão cedo. Dá para encerrar esta crônica lembrando o início e o final de um conto de Simões Lopes Neto: Cuê-puxa! … é bicho mau, o homem!

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