Força noroeste

O pombo deixa o parapeito da casa abandonada. Uma força incomum de orientação noroeste, que a todos imanta, imprime impulso sem volta e torna os passos acelerados. As falas diminuem à medida que seguem. O córrego, de águas ligeiras, anuncia urgência. Certo desassossego imprime ao percurso a sensação de algo imprevisível, à semelhança da calmaria que antecede o salto de quedas verticalizadas.

A opção pela liberdade natural exige destemor, sem desconhecer os riscos. Eva, Irene e Cristian se preocupam com a criança e com Líris. As abelhas ameaçam irritação, enquanto o cardeal se firma no dorso do cervo. Luna ausculta o ar. Até o pombo torna seu voo mais cuidadoso. Troncos e criaturas têm dificuldades em evitar atropelos. Quantas vezes a quietude é mais preocupante do que o alarido?

Cristian lembra do Sanatório. Enquanto as pessoas conversavam ou até discutiam, o controle era possível. Porém, à medida que a placidez se prolongasse, a sensação de algo por acontecer se precipitava. Quietude pode prenunciar espreita, antes do desenlace fatal. O terreno em forma de aclive não tarda a assumir o contorno de boca de cratera. Todos entendem que é preciso cautela corajosa. Um abismo se abre em frente. Em plena serrania, a feição geológica se escancara em trejeito inusitado.

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Cristian observa atento o terreno em volta. Um cenário majestoso se revela em águas e ombreiras verdes, que suavizam o perfil agressivo dos flancos em acentuado desnível. As águas tanto se lançam em quedas acentuadas como encontram vertências, para, logo adiante, formatarem córregos, a exemplo do que serviu de trajetória à comitiva em trânsito.

Embevecidos, todos tomam assento, à prudente distância da borda da cratera. Estruturas desse tipo, a exemplo de cânions, magnetizam a quem as observa. Impossível não sentir a iminência da queda vertiginosa, nem tanto pela profundidade desconhecida, mas pelo chamamento natural da terra.

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Líris aconchega, com zelo ainda maior, sua bonequinha. “Não olhe”, diz a menina. “Vais ficar com medo e podes cair.” Cristian se dispõe a acalmar aos demais: “Gente, estamos frente à força da natureza. A mesma que ergue montanhas e afunda as rochas. Ela vem de dentro, das profundidades. Vejam os arroios que despejam suas águas na cratera. Estão alinhados à semelhança de fraturas que costuram o terreno. Lembram dos filmes que mostram os Andes e as fossas submarinas? Pois é essa a força que faz tudo isso acontecer.”

Cristian pensou em falar dos terremotos, porém preferiu postergar essa parte. Poderia assustar. Daqui a pouco alguém lembraria dos vulcões que expelem lavas, que remodelam tudo a sua frente… Por ora, bastava se inebriar com a beleza profunda do cenário. Também os mistérios mais aterradores transmutam-se em encorajadora curiosidade e autorizada contemplação.

Já não temerosos, mas maravilhados, todos atentam para a deslumbrante paisagem. O pombo ensaia voo sobre o precipício. O cardeal o segue. As abelhas logo vislumbram o néctar das flores que despontam atrativas junto aos flancos mais próximos. O cervo aproveita para pastar e Luna se esparrama, em voluntariosa alegria, na grama farta.

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As duas cobras se aninham sob um bloco de basalto. As cobras sabem das profundezas e de seus mistérios. A criança liga o celular. Busca informações. Chama por Líris: “Precisamos saber sobre isso aqui”. Nada encontram. Que lugar seria esse que inexiste nas redes virtuais? Líris mostra o abismo a sua bonequinha: “Foi só um susto. Se a gente cuidar, nada vai nos acontecer.

Veja, bonequinha. Você, que tem olhos mágicos, precisa enxergar tudo isso.” “Como sabemos pouco!”, murmura Irene para Eva. As duas mulheres afastam suas mãos, as mesmas que teciam fios à época do Sanatório. “Eva, preciso te contar um segredo. Não posso mais calar. Espero que não fiques chateada. Talvez não queiras mais conversar comigo. Mas preciso falar. E, na beira deste imenso penhasco, antes de tentarmos entender o que nos moveu até aqui, é o melhor lugar. Me escutarás?”.

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