
Reconciliação do “Padim” com a Igreja Católica aconteceu em 2015, já durante pontificado de Francisco; e processo de beatificação começou em 2022. Processo de beatificação de padre Cícero avançou durante pontificado de papa Francisco
Reprodução/Vatican Media/AFP
Foram mais de oito décadas até que o santo popular mais conhecido do Ceará, padre Cícero Romão Batista, fosse reabilitado pela Igreja à qual serviu por toda a vida. Em 2015, a Santa Sé se reconciliou com padre Cícero, e em 2022 teve início o processo de beatificação do sacerdote. Entre estes dois momentos-chave, houve ainda uma visita secreta de um perito do Vaticano ao Ceará para analisar o caso. E todo o processo foi impulsionado pelo papa Francisco, falecido na última segunda-feira (21).
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Atualmente, padre Cícero possui o título de Servo de Deus, atribuído àqueles que estão no início de processo de canonização. A canonização possui quatro etapas, dentre elas, a beatificação. O processo ocorre em etapas que envolvem trocas de informações entre a Igreja, em Roma, e a diocese onde o candidato desenvolveu sua obra – no caso de padre Cícero, a Diocese do Crato.
O padre Wesley Barros é vice-postulador da causa de beatificação do padre Cícero, sendo um dos responsáveis pelo processo na Diocese do Crato. Conforme Wesley, a postura de Francisco foi fundamental para criar um ambiente favorável à reabilitação do sacerdote cearense junto à Igreja.
“O Papa Francisco, com seu estilo aberto ao diálogo e disposto a acolher as várias realidades, marcou profundamente a vida da Igreja nos últimos 12 anos. Então foi esse espírito de abertura, essa coragem de acolher, próprios do Papa Francisco, que possibilitou-nos, então, retomar o diálogo com a Santa Sé a respeito do Padre Cícero”, afirma padre Wesley.
Nascido em 1844 na cidade do Crato, Cícero Romão Batista foi ordenado padre em 1870 e, em 1872, se tornou o capelão da Igreja de Nossa Senhora das Dores, no então povoado de Juazeiro. Em 1889, a história de Cícero e de Juazeiro mudou para sempre com a repercussão dos chamados fatos extraordinários da beata popular Maria de Araújo.
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No dia 1º de março daquele ano, durante uma missa, após Cícero colocar a hóstia na boca de Maria de Araújo, a hóstia teria se convertido em sangue. Devotos afirmaram se tratava de um milagre – a hóstia havia se convertido no sangue de Cristo. Mas a Igreja discordou.
Desde essa data até a morte de Cícero, em 1934, o padre e a Igreja viveram em um processo que levou à proibição de que o sacerdote celebrasse missas em Juazeiro. A despeito do imbróglio, a história do milagre correu o sertão, Cícero virou santo popular e a vila de Juazeiro do Norte se tornou um dos principais pontos de peregrinação do país e a terceira maior cidade do Ceará.
Desde 2006, o Vaticano já havia concluído uma análise dos documentos do processo que, no século passado, havia interditado o Padim, como Cícero se tornou conhecido entre os fiéis. A conclusão foi que o processo havia seguido os trâmites, e que qualquer mudança na abordagem da Igreja com relação ao sacerdote cearense precisaria seguir outro caminho.
“A história e os acontecimentos que se deram em torno do Padre Cícero estavam, cronologicamente, muito distantes de nós, do momento atual e da sensibilidade atual”, analisa padre Wesley. “As personagens envolvidas, as pessoas ouvidas, os testemunhos, não existiam mais, todos falecidos, não tinha mais como julgar novamente com novas matérias aquelas questões todas”.
Foi quando, nas palavras do padre, entrou a “sensibilidade” de Francisco, cujo papado iniciou em 2013. Em 2015 chegou do Vaticano a carta assinada pelo cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do papa Francisco, autorizando a a reconciliação do Padim. No documento, Parolin relata que a carta foi “redigida por expressa vontade de sua santidade o Papa Francisco”.
Papa Francisco acena a fiéis na Praça de São Pedro, no Vaticano, em foto de 21 de outubro de 2015
Alessandro Bianchi/Reuters
A visita secreta e a mudança de Francisco
Conforme o padre Wesley Barros, todas as questões em torno de padre Cícero, em Roma, estavam envoltas em pontos controversos. “Todos aqueles que escreveram sobre o Padre Cícero ou queriam santificá-lo para além de todas as limitações humanas, ou queriam condená-lo para além de todas as virtudes”, aponta.
Após a reconciliação, em 2015, foi necessário mais um trabalho de curadoria da Diocese do Crato para levar à frente o pedido de beatificação do Padim. E um dos principais objetivos era fazer com que a Santa Sé enviasse uma testemunha para entender, nos dias de hoje, quem eram os romeiros e o que representava padre Cícero.
Em fevereiro de 2018, foi enviado, em segredo pontifício, um perito oficial do Vaticano para conhecer a Romaria de Nossa Senhora das Candeias.
“De longe, com base em documentos da época, se tinha em mente que era um movimento fanático, um movimento de pessoas analfabetas, que não tinham instrução, que não tinham respeito pela Igreja […] E essa visita mostrou uma outra realidade. Os romeiros que aqui vêm são romeiros fiéis à Igreja, são catequistas, líderes nas comunidades onde atuam”, afirma o vice-postulador da beatificação. “Tudo isso representou, naquele momento, uma novidade para o perito romano que aqui esteve”
Em maio de 2022, quando os bispos do Ceará estiveram reunidos em uma visita a Francisco, eles mostraram ao papa um vídeo que retratava a a vida dos romeiros e suas esperanças com relação à postura da Igreja Católica para com o Padim.
“O papa, com sensibilidade, olhou, acolheu e teve a coragem de dizer, ‘vamos estudar, vamos abrir a causa'”, afirma padre Wesley. Mais tarde, naquele mesmo ano, em novembro de 2022, o Vaticano autorizou o início do processo de beatificação de padre Cícero.
Sacerdotes do Ceará e Piauí em visita ao Papa Francisco no Vaticano, no ano de 2022. Alguns meses depois, foi aberto o processo de beatificação de Padre Cícero
Vatican News
Com o processo aberto, a Diocese do Crato iniciou o trabalho de recolher, microfilmar e digitar todas as cartas que Padre Cícero escreveu ou recebeu. Junto a isso, foi anexado um relatório feito pela Comissão Histórica, que engloba a vida e as virtudes do padre.
Por fim, foram adicionados mais de 70 depoimentos de pessoas que tiveram contato, conviveram com quem teve contato ou que relatam milagres operados por meio de padre Cícero. Toda a extensa documentação será enviada a Roma, onde o processo vai seguir.
Para o padre Wesley Barros, a abertura que Francisco promoveu na igreja ao longo de seus 12 anos de pontificado, de uma igreja mais aberta e mais atenta às demandas da comunidade, garante que o processo de beatificação deve seguir sem problemas.
“Nós acreditamos que, do ponto de vista jurídico, o processo vai seguir normalmente, sem nenhuma interferência. E, do ponto de vista da acolhida da figura do padre Cícero, eu creio que segue também o itinerário, porque esse caráter de proximidade, de acolhida, de abertura de diálogo que o papa Francisco imprimiu na Igreja nos últimos tempos, ele deve marcar o itinerário da Igreja de agora em diante, porque a Igreja caminha sempre para a frente”, conclui.
Estátua de Padre Cícero, no Horto, em Juazeiro do Norte
Gustavo Pellizzon/SVM
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