Caetano e Bethânia irmanam grandezas na festa do reencontro em show que já sinaliza o fim da era gloriosa da MPB


Maria Bethânia e Caetano Veloso estreiam na Farmasi Arena, no Rio de Janeiro (RJ), o show de turnê que se estende até dezembro
Rodrigo Goffredo
Resenha de show
Título: Caetano & Bethânia
Artistas: Caetano Veloso e Maria Bethânia
Local: Farmasi Arena
Data: 3 de agosto de 2024
Cotação: ★ ★ ★ ★ ★
♪ Tudo ainda pareceu tal e qual 1978 – ano da primeira turnê de Caetano Veloso e Maria Bethânia em dupla – quando os irmãos baianos apareceram juntos no palco da Farmasi Arena na noite de ontem, 3 de agosto, e puxaram a marcha tropicalista Alegria alegria (Caetano Veloso, 1967) precisamente às 21h19m, minutos após os 11 músicos da banda e os três vocalistas terem se posicionado em cena.
Era a primeira música da primeira das 16 apresentações do show que provocou corridas por ingressos em março assim que abriram as vendas da turnê Caetano & Bethânia.
No entanto, nada igual. Se o tempo, compositor de destinos, tratou de harmonizar as vozes dos cantores numa melodia mais afinada do que a de 1978, esse mesmo tempo também impôs ausências, saudades e limites que fazem com que Bethânia cante de olho no teleprompter sem prejuízo das interpretações, naturalmente menos intensas nos últimos 20 anos.
Já não há a presença física de Gal Costa (1945 – 2022) – doce bárbara que saiu abruptamente de cena – e essa ausência tão sentida e tão presente deixou no ar a sensação de que a própria MPB começa a sair de cena. Milton Nascimento já se aposentou dos palcos. Gilberto Gil – outro doce bárbaro – já sinaliza a vontade de partir para shows de esferas mais íntimas enquanto Chico Buarque, o mais novo octogenário do panteão da MPB, segue em marcha cada vez mais lenta no que diz respeito à criação musical.
Nesse sentido, a turnê Caetano & Bethânia talvez seja o último grande show da vida de quem se formou musicalmente vendo e ouvindo esses gênios projetados entre 1965 e 1967. Trata-se de show moldado para as multidões de arenas e estádios com roteiro cravejado de hits (clique aqui para conhecer todas as 41 músicas do roteiro, listadas na ordem do show com os devidos créditos dos compositores e os anos em que foram lançadas em disco e/ou show).
Blocos individuais com sucessos radiofônicos reiteraram a opção dos cantores por não correr riscos, ainda que Caetano, provocador de alma tropicalista, tenha dado voz a um louvor evangélico de autoria do pastor Kleber Lucas, Deus cuida de mim (1999), canção gravada por ele há dois anos com o próprio Kleber. Quase toda a plateia ficou em silêncio profano.
A outra surpresa veio já nos momentos finais do show, quando Caetano e Bethânia professaram Fé (2022) com todos os sonoros palavrões dessa música do repertório da cantora Iza, em gesto que também pode ser interpretado como apoio à artista carioca, recente vítima pública de trapaça da paixão.
Alicerçado no monumental cancioneiro autoral de Caetano Veloso, como Bethânia já sinalizara em entrevistas, o roteiro mantido em sigilo potencializa a vocação popular de show gerado para promover alto astral com o canto de lindas canções.
E elas, as canções realmente lindas, estão lá, atrapalhadas na estreia nacional da turnê por problemas de som que tornaram as vozes dos cantores por vezes inaudíveis nas três primeiras músicas.
Foi somente a partir de Oração ao tempo (Caetano Veloso, 1979) que tudo entrou nos trilhos urbanos de roteiro que propõe viagem por 60 anos de MPB em rota que, a rigor, parte de tempos imemoriais, puxando o fio da memória familiar dos irmãos em Santo Amaro da Purificação (BA), terra do samba de roda armado no show com as palmas que embalaram medley que agregou 13 de maio (Caetano Veloso, 2000), Samba de dois-dois (Roque Ferreira e Paulo César Pinheiro, 2004) e A donzela se casou (Moreno Veloso, 2022).
Sim, como os irmãos reiteraram no canto de Motriz (Caetano Veloso, 1983), em tudo no show – e na própria vida dos artistas – há as vozes dos pais de Caetano e Bethânia, José Telles Velloso (1901– 1983) e Claudionor Viana Telles Veloso (1907 – 2012), a Dona Canô, matriarca da família e, em sentido amplo, da própria Bahia.
A cargo do baixista Jorge Helder e do violonista e guitarrista Lucas Nunes, este responsável pela sonoridade exuberante dos últimos disco e show de Caetano, a direção musical do espetáculo se assenta no solo afro-brasileiro com mix caloroso de sopros e percussões, estas tocadas por Kainã do Jêje (também na bateria) e pelos irmãos Pretinho da Serrinha (creditado na ficha técnica como “participação especial”) e Thiago da Serrinha.
Caetano & Bethânia é show concebido para a imponência de grandes espaços. Ainda assim, dentro do gigantismo traduzido pelos painéis verticais que expõem fotos dos artistas ao longo do tempo (com direito a uma foto inédita de Gal na década de 1970, presumivelmente de 1979), as maiores belezas residem nos detalhes.
É quando, durante o verso “Gente é pra brilhar” da canção Gente (Caetano Veloso, 1977), Bethânia abre o blazer para mostrar a joia reluzente que porta há décadas nos palcos da vida.
É quando a mesma Bethânia sublinha em Baby (Caetano Veloso, 1968) o verso “Baby, I love you” para expressar o amor imortal por Gal, celebrada silenciosamente no início do show com o canto de Não identificado (Caetano Veloso, 1969) – a canção que Caetano fez para ela, Gal – e, já no fim da apresentação, com a lembrança da citada Baby, seguida pelo rock Vaca profana (Caetano Veloso, 1984), cujo refrão foi surpreendentemente entoado por Bethânia.
O detalhe luxuoso também aparece no sopro do trompete com que Diogo Gomes pontua o arranjo da já mencionada canção Motriz, mote do roteiro reverente ao passado glorioso dos artistas.
Entre eventuais surpresas como Dedicatória, música menor feita por Caetano para a irmã louvar a ialorixá Mãe Menininha (1894 – 1986) no show Maria Bethânia 20 anos (1985), o roteiro priorizou sucessos de ambos.
O coro especialmente entusiástico do público quando Caetano reviveu a canção Sozinho (Peninha, 1996) ao próprio violão, mas também com o toque do violão de Lucas Nunes, indicou que o público se importava menos com conceitos e surpresas do que com a oportunidade de acompanhar os ídolos nas “lindas canções” mencionadas em verso de Os mais doces bárbaros (Caetano Veloso, 1976), segunda das 41 músicas do roteiro.
Ciente disso, o cantor jogou O leãozinho (Caetano Veloso, 1977) para a galera assim como, momentos depois, Bethânia realçaria o drama afetivo do samba-canção Negue (Adelino Moreira e Enzo Almeida Passos, 1960) e a sofrência de As canções que você fez pra mim (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1966), esta embalada em grandioso arranjo de espírito soul (os sopros de Diogo Gomes, Joana Queiroz, Jorge Continentino e Marlon Sette fizeram a diferença na direção musical).
São músicas de dois álbuns, Álibi (1978) e As canções que você fez pra mim (1993), que representaram picos de popularidade na discografia da intérprete. Entre um e outro, Bethânia foi ouvida nas FMs, em período de baixa comercial na década de 1980, com a canção Brincar de viver (Guilherme Arantes e Jon Lucien, 1983), não por acaso incluída no set solo da cantora.
Com exaltações à Mangueira, escola do coração de ambos, Caetano Veloso e Maria Bethânia irmanaram grandezas e afinidades em cena, depurando as diferenças para convergirem juntos e inabaláveis nesta turnê que, de certa forma, fecha ciclo de 60 anos de MPB. Como eles cantam de verdade, a festa se faz com “a mesma grande vontade”.
Tudo de novo, como diz o título da música apresentada na turnê de 1978 e revivida no arremate do show de 2024, cujo bis não é propriamente um bis porque os artistas cantam somente um ou outro verso de Odara (Caetano Veloso, 1977), música a rigor cantada pelos vocalistas com o arranjo Black Rio da big band.
Só que, por mais que tudo pareça tal e qual, no entanto nada é igual. Não há Gal. E essa consciência, de que uma era dourada da MPB caminha para um fim já próximo, faz a festa transcorrer com leve toque de melancolia disfarçada pela magia imponente do reencontro em cena de dois artistas gigantes pela própria natureza complementar.
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