
Como a presença de igrejas pelas aldeias da terra indígena entre Peruíbe e Itanhaém, no Litoral do Sul, tem gerado conflitos geracionais – e existenciais. Diácono Javã, de 26 anos, lidera igreja da Tekoa Ka’aguy Mirim, em Itanhaém
Vinícius Mendes/BBC
Quando o pastor Ubiratã Silva viu o mutirão atulhando concreto na primeira coluna do futuro templo evangélico, na ponta da aldeia Tekoa Kwaray, ele lembrou novamente da noite em que o havia visto — já construído — em um sonho.
Tinha sido poucos meses antes do início da obra, ainda em meados de 2012, em uma época em que os cultos não aconteciam porque não havia lugar para eles.
“Deus me mostrou que ela seria bem aqui”, conta à BBC News Brasil, batendo o pé firme no piso da igreja Oy Djaporanduá (Casa de Oração), na última rua de Peruíbe, cidade a 139 km de São Paulo.
Além de pastorear o ministério desde o início, quando da inauguração do espaço, Ubiratã também é cacique da aldeia Tekoa Kwaray, uma das 12 que habitam o território indígena Piaçaguera.
Demarcado por um decreto da então presidente Dilma Rousseff, em abril de 2016, o território corresponde a uma imensa área de cerca de 2,7 mil hectares na fronteira entre Peruíbe e Itanhaém, os dois últimos municípios do Litoral Sul paulista, cortado ao meio pela rodovia que carrega o nome de um dos primeiros jesuítas a pisar no que seria, muito tempo depois, o Brasil: o padre português Manuel da Nóbrega (1517-1570).
Segundo a Comissão Pró-Índio de São Paulo, uma organização não governamental fundada nos anos 1970 para fiscalizar políticas voltadas às populações indígenas no Estado, 358 pessoas viviam no Piaçaguera até 2023.
Esse número pode ser maior — ou menor — porque, como alerta a Coordenação Regional do Litoral Sudeste (CRL) da Fundação Nacional do Índio (Funai), há uma mobilidade intensa e permanente entre todos os territórios indígenas que cruzam, de um lado ao outro, a costa paulista.
Só na Tekoa Kwaray, aldeia chefiada por Ubiratã, vivem 35 pessoas, de acordo com o órgão.
“Sou o pastor-cacique daqui”, repete ele, sempre que pode, e sempre com um sorriso.
‘A 1ª igreja indígena do Brasil’
O sonho que Ubiratã havia tido, como um prenúncio, não demorou a se concretizar.
Meses depois, em uma manhã da metade de 2012, ele despertou com os berros de alguém lhe chamando da rua, onde a aldeia termina e a cidade começa. Era um antigo amigo, Robson Miguel, um maestro que alçou fama após aparecer em programas de televisão cantando canções — como o Hino Nacional — em guarani, e que também saiu em jornais por viver em um castelo medieval em Ribeirão Pires, aberto ao público, na vizinhança de São Paulo.
Vale dizer que, em 2015, após Robson dar entrevistas se dizendo ex-cacique de uma aldeia guarani de Mongaguá, também no Litoral Sul, lideranças indígenas locais publicaram um abaixo-assinado dizendo que sequer o conheciam.
“O Robson estava acompanhado de um casal de missionários que tinha vindo da capital só para conhecer a gente”, lembra daquele dia, orgulhosamente, o pastor-cacique Ubiratã.
“Na época, eu morava em um barraquinho de três por três [metros], e notei que eles se sensibilizaram. Na hora de ir embora, eles me falaram: ‘Vamos construir uma casa para você!'”.
Foi ali que Ubiratã se recordou, pela primeira vez, do sonho que Deus lhe dera: um templo resplandecido no coração da sua aldeia. Agradeceu a oferta generosa, mas colocou outra na conversa.
“A gente precisa buscar primeiro o reino do Senhor. Então, disse para ele assim: ‘Missionário, não sonhei com uma casa, não. Eu sonhei foi com uma igreja!'”. O trato foi feito ali, na hora.
Aquele casal era Arthur e Paula Bittencourt, lideranças da Assembleia de Deus de Utinga, em Santo André, no ABC paulista. Ele é filho de José Bittencourt Madureira, pastor que preside a igreja e que foi deputado estadual por quase duas décadas, entre 2003 e 2019.
José apareceu nos jornais há dois meses, escoltado por policiais após ser expulso pelos próprios fiéis de uma assembleia em Santo André, consequência de um conflito político da instituição que transbordou para um culto. A BBC News Brasil tentou contato com ambos, sem sucesso.
Mas o pastor-cacique Ubiratã não acreditou, de imediato, que o templo sonhado seria construído pelo pastor, porque vários outros — irmãos, pastores, missionários, igrejas inteiras — tinham feito promessas idênticas e sumido.
Sua esposa, Rita, (kunhã kurutsy mirim, mulher da cruz pequena) o repreendeu por acreditar no pastor, até ela ver com os próprios olhos, em uma manhã de setembro, uma carreta cheia de blocos estacionar na margem da comunidade.
“Fui lá perguntar quem tinha enviado aquilo tudo, e o pessoal do caminhão respondeu: ‘Foi um pastor lá de São Paulo chamado Bittencourt!’. E eu falei: ‘Eita, Jesus! O mistério é forte mesmo!'”, relata Ubiratã.
Dias depois, uma tropa da Assembleia de Deus de Utinga desceu pela Rodovia dos Imigrantes, estrada que liga a capital paulista ao Litoral Sul, para começar a erguer a igreja prometida.
“A gente ficou uns três meses enchendo, todos os sábados, uma kombi de irmãos pedreiros, de comida, água, e ia todo mundo lá fazer o mutirão”, relembra Robson Miguel, que organizava as caravanas.
“Era lindo de se ver: um esticando linha, outro batendo pau de árvore no chão, outro levando o carrinho de cimento, gente lá em cima enchendo coluna. Todo mundo na obra.”
No final de 2012, o templo foi, enfim, inaugurado, ainda que sem forro no teto e calhas nas laterais — uma ausência dramática porque agora, quando chove, a água escorre pelas paredes e vaza no átrio da igreja. Por causa disso, muitos encontros tiveram que ser interrompidos para que os fiéis, rodos à mão, levassem a água novamente para fora.
Antes do primeiro culto da história da igreja, em um domingo à tarde, o pastor-cacique Ubiratã autorizou que os irmãos colocassem uma placa com o nome do ministério de Utinga no arco da porta principal, mas eles não quiseram.
“Disseram que eu podia escrever: ‘primeira igreja indígena do Brasil'”, recorda. É o letreiro que permanece ali até hoje, ao lado do desenho de um cocar onde, além do nome do ministério, está a frase “Tupã nhe’e ogwedjy agué” (“Onde desceu o espírito”).
Robson Miguel lembra mais da ocasião. “O pastor Bittencourt mandou uma banda inteira para tocar lá em Peruíbe. Os indígenas nunca tinham visto um trompete, um trombone, nada… Eles se alegraram muito”, conta, gargalhando.
Igrejas nas aldeias
A Tekoa Kwaray, de Ubiratã, não é a única aldeia dentro do território Piaçaguera a ter uma igreja.
Não existe contagem oficial (há vários ministérios na região), mas algumas fontes ouvidas pela reportagem — da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), missionários e alguns moradores — dizem que pelo menos metade delas têm templos evangélicos.
Entre março e abril, a BBC News Brasil visitou cinco das 12 aldeias do Piaçaguera, com autorização dos respectivos caciques. Há igrejas em todas.
Na Tekoa Ka’aguy Mirim, em Itanhaém, por exemplo, o pequeníssimo templo — feito com chapas de madeira rosada adquiridas com o dinheiro da igreja Missão Nacional, sediada na Sapopemba, bairro da Zona Leste de São Paulo, e com troncos de árvores tirados da mata ao redor — tem cultos sempre às terças, quintas e domingos. A aldeia, que foi fundada só há alguns meses, fica na margem do Piaçaguera, em uma área que ainda está sendo reivindicada à Funai.
Já na Nhamandu Mirim, na fronteira incerta entre Peruíbe e Itanhaém, o espaço dos cultos também foi erguido em um mutirão dos próprios indígenas, no fim de 2023, depois que a Primeira Igreja Batista (PIB) de Santo André juntou cerca de R$ 7 mil em uma vaquinha entre os irmãos para doar à comunidade.
No púlpito, entre os instrumentos musicais — teclado, contrabaixo, bateria — e duas potentes caixas de som, há um retrato, pintado à mão em tinta a óleo, da sogra do presbítero Júnior (Awa wewe dju, homem da asa de ouro). Ela foi a primeira dali a se converter.
Os batistas mantêm células também nas aldeias Tekoá Porá, vizinha à Nhamandu, e Amba Porá, não tão distante dali, em Miracatu, a 161 km de São Paulo.
“Temos vocação para missões”, diz, empolgada, a missionária Luzia Coelho, que serve de ponte entre a sede paulistana da PIB e o trabalho no Piaçaguera. “O objetivo é alcançar para Jesus todo mundo do território.”
Ela fala de si sempre no plural, em reverência à companhia inequívoca do marido, João, também um missionário. Por conta do esforço evangelizador, o casal se mudou há alguns anos para Ana Dias, uma vilinha entre bananais que, apesar de fazer parte do município de Itariri, fica a 16 km de distância do centro da cidade, quase na periferia de Peruíbe.
Os cultos costumam seguir a liturgia tradicional: hinos da Harpa Cristã, saudações dos fiéis e, ao fim, a pregação ministrada geralmente pela liderança local. A grande diferença — que atrai irmãos e irmãs de vários outros lugares — são os louvores, muito populares entre evangélicos Brasil afora e cantados ali todos em línguas nativas, sobretudo o guarani.
Não raro, os crentes das aldeias são levados para cantá-los em igrejas de São Paulo. “É uma atração, né?”, sorri Ubiratã, lembrando do dia em que levou sua família para se apresentar em um culto na própria Assembleia de Deus de Utinga — a que construiu o templo da Tekoa Kwaray.
A maioria dos membros geralmente é da própria aldeia ou das vizinhas, mas há sempre pessoas de fora que aparecem para pregar, cantar ou, então, por simples curiosidade. “São turistas”, definiu um presbítero. Todos os entrevistados disseram que não precisam pagar dízimos.
O maestro Robson Miguel, que congrega em Santo André, tem uma explicação na ponta da língua para esse “avanço descomunal do evangelho pelas aldeias do Piaçaguera”: é a retidão encontrada ali, um paraíso possível dos evangélicos.
“As igrejas queriam que seus membros vivessem igual os indígenas”, diz Miguel.
“Não precisa de polícia, tudo é de todos, não tem gay, não tem estupro, o valor da família é algo sagrado, todo mundo honra o pai e a mãe, os mais velhos… Os indígenas seguiam direitinho os dez mandamentos sem nem conhecer a Bíblia!”.
Não é a mesma percepção da missionária Luzia, para quem o trabalho de levar a palavra de Deus às aldeias é deveras difícil, “porque [os indígenas] têm um estilo de vida um pouco complicado, né?”, observa ela.
“A gente faz um aconselhamento para dizer que a sociedade não vive daquele jeito, que têm leis para serem cumpridas. Para [eles] levarem uma vida mais normal…”, continua.
Existem também algumas poucas perspectivas acadêmicas. Há uma década, por exemplo, a antropóloga Camila Mainardi conviveu por bastante tempo na terra Piaçaguera para escrever sua tese de doutorado, depois intitulada “Desfazer e Refazer Coletivos: o movimento tupi guarani” na Universidade de São Paulo, um trabalho minucioso sobre conflitos que atravessam o território e, principalmente, suas consequências.
Dos vários relatos que ela — hoje professora da Universidade Federal de Goiás — fez para sua tese estão alguns que lidam, justamente, com a presença evangélica nas aldeias.
Em um deles, por exemplo, uma liderança da Nhamandu Mirim convocou uma reunião para debater críticas de uma jovem sobre a manutenção da cultura indígena e, em dado momento da conversa com os demais, reclamou que as igrejas estavam dividindo as comunidades.
Em outro relato, uma interlocutora lhe conta como, no dia em que a mãe morreu, se ouviu tanto as línguas estranhas “dos crentes” quanto rezas em tupi-guarani. “A mãe dela ensinou, na hora da morte, que havia conexão entre ambas: cultura e igreja”, escreve Mainardi.
Para ela, então, o próprio movimento indígena que ela viu no território é feito — e faz — “contrastes e aproximações entre casa de reza [espaço da religião tradicional das aldeias], igreja evangélica e momentos de concentração e de reza”.
A reportagem procurou duas outras entidades em busca de percepções sobre o fenômeno: a Comissão Pro-Índio de São Paulo — que não respondeu aos contatos — e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que, ocupada com o trabalho do Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, não retornou até a publicação desta reportagem.
Conflitos existenciais
Uma das aldeias mais novas, a Tekoa Ka’aguy Mirim também tem um cacique relativamente jovem: Juliano Cabral (Nheery, guardião dos anjos), que completou 40 anos recentemente.
Formado em pedagogia, ele entrou no curso, em São Paulo, quando já lecionava saberes tradicionais e idiomas às crianças da sua comunidade, dentro do Piaçaguera — uma história que gosta de repetir sempre que pode. Diz que é, inevitavelmente, um professor antes de ser um cacique.
Ao contrário da Tekoa Kwaray, do pastor-cacique Ubiratã, a Ka’aguy Mirim não faz parte do território demarcado do Piaçaguera — os indígenas reivindicam à Funai uma extensão dele que entra no bairro de Jardim Coronel, na periferia de Itanhaém.
Enquanto a demarcação não sai, eles tentam ocupá-la ao máximo para afastar possíveis invasores. No dia em que a BBC News Brasil esteve na aldeia, anúncios de lotes à venda se acumulavam pela estrada de terra que dá acesso à aldeia.
Quando chegaram ali, porém, Juliano diz que precisou lidar com outro dilema existencial: seu afilhado, Javã (Mirimndju, pequeno amarelo), de 26 anos, já membro da filial da igreja Missão Nacional, em Peruíbe, lhe contou do plano de estender o ministério para a comunidade.
Faltava um lugar para cultuar, mesmo que, na Bíblia, esteja escrito que “onde estejam dois ou mais reunidos no nome Dele, ali Ele está”, declama Javã.
O rapaz levou o apoio de Ubiratã, de quem é genro, e do pastor da missão, que estava interessado em reforçar o papel missionário do nome do seu ministério.
“No começo eu não gostei nada, né?”, admite Juliano. “Não é comum ter uma igreja dentro da comunidade indígena”.
Então, à medida que Javã insistiu, Juliano convocou o pastor para uma reunião. Repetiu que os guaranis dificilmente aceitam igrejas em suas aldeias (em um universo majoritariamente conformado por tupi-guaranis, Juliano é guarani mbya, uma das três ramificações guaranis no Brasil — as outras são nhandeva e kaiowá), mas que, como líder político, sabia do papel dele de trabalhar pelo bem coletivo. Se algumas famílias dali eram evangélicas, sua obrigação era autorizar a vinda do templo.
“A única coisa que falei para o pastor foi: ‘Não quero que você me obrigue a ir na sua igreja. Eu já frequento a casa de reza, que é da nossa cultura'”, conta.
“Os tupi-guaranis têm mais conhecimento sobre o evangelho. Os guaranis, não”, justifica o agora diácono Javã, que encabeça os cultos da missão na aldeia.
Longe de ser uma opinião particular, a reportagem ouviu o mesmo argumento de outros indígenas dentro do Piaçaguera, em uma espécie de senso comum religioso cujos efeitos são sensíveis no cotidiano dali.
“É que eles [guaranis] conhecem o Deus criador [cristão], mas não conhecem Jesus, filho de Deus. É mais difícil a gente evangelizar essas pessoas”, explica Javã.
A própria relação familiar entre ele e o cacique, vez ou outra, cruza as diferenças entre a palavra de Cristo e a casa de reza — ou opy, no guarani. “Esse aí é impossível de convencer”, sorri ele apontando para Juliano, que responde com outro sorriso.
A comunidade está perto de terminar sua opy, um salão coberto por telhas de fibra cujos muros sobem até a altura do peito. Quando ficar pronta, ela também servirá como escola — na qual o cacique voltará a exercer seu magistério.
Mas, se ali o conflito foi resolvido — Juliano chegou até a ajudar Javã a erguer a igreja —, em várias outras comunidades do território, ele permanece intenso.
De um lado, como escreve a antropóloga Camila Mainardi, há uma cultura que promove “relações entre as pessoas da comunidade”, por meio da casa de reza, da língua, do jeito de viver, das estratégias de se mover pelo território para protegê-lo. Fica compreensível quando o cacique Juliano fala da “nossa cultura”.
Mas, de outro, há uma tensão permanente com um arcabouço evangélico em tudo diferente e, por isso mesmo, sempre pronto a exigir transformações profundas na vida das pessoas que se relacionam com ele.
“Eu diria que essas duas coisas não conseguem coabitar”, observa um agente que, por trabalhar na região diretamente com os indígenas, prefere não se identificar.
“Evangélicos acham que tudo o que os indígenas fazem é coisa do demônio. Por exemplo: temos aldeias aqui que fizeram contato com outras do norte, Roraima, Rondônia, e que agora fazem rituais usando ayahuasca. Os evangélicos chegaram aqui falando: ‘Isso é mal, é do demônio’. Virou uma crise”, diz o agente.
“Mas é preciso respeitar os indígenas que querem servir a Cristo”, rebate Robson Miguel, aliado do pastor-cacique Ubiratã.
“Quando os padres vieram aqui fazer o que fizeram, eu não vi ninguém criando confusão”, prossegue lembrando da catequização católica no nascente Brasil, a partir do século 15.
A comissão local da Funai mapeou que nem todas as aldeias do Piaçaguera conversam entre si hoje, muito por discordâncias religiosas. O órgão observa que, se algumas delas até aceitam receber visitantes evangélicos ou mesmo toleram a existência dos templos, há várias outras que têm se mantido firme contra eles.
Ao contrário do cacique Juliano ou do pastor Ubiratã, lideranças das aldeias mais relutantes falaram com a BBC News Brasil sempre em condição do anonimato. Elas se preocupam que a posição contrária às igrejas crie novos conflitos — que dividem famílias e comunidades inteiras.
“A gente prefere manter distância, porque é muito perigoso para nossa identidade. Tudo o que eles [evangélicos] falam não é o que nós aprendemos com os nossos antepassados — e nós temos que respeitar nossos antepassados”, explica um cacique de uma aldeia de Itanhaém.
Em sua visão, há dois problemas com a presença cristã no território indígena. Um é a seletividade da atuação dos religiosos.
“A igreja ajuda quem é evangélico. Quem não é…”, interrompe, em um silêncio irônico.
O segundo é a abordagem que, ao seu ver, se ampara mais na conversão das pessoas do que no trabalho social que dizem exercer. “Mas a gente não quer assistencialismo. A gente quer projeto”, vocifera.
“E não é todo mundo de dentro das comunidades que aceita isso”, conta a liderança de outra aldeia. “Eles [evangélicos] querem só impor a religião deles.”
A missionária Luzia reage dizendo que o trabalho que ela e outros ministérios fazem é, nesse sentido, bastante cuidadoso.
“Ninguém fica convencendo ninguém do que é certo ou errado. A gente só prega o evangelho e faz aconselhamento. Na igreja da Nhamandu [Mirim], não havia nem lugar para cultuar, para você ter ideia, mas tinha uma necessidade [espiritual] da comunidade grande. Depois que fizemos a igreja, as pessoas não paravam de chegar.”
O agente que trabalha no território observa que, um aspecto positivo dos templos é a capacidade deles de fazer movimentar, entre os indígenas, recursos que vão de comida até roupas. “Sem contar o trabalho que eles fazem com as pessoas que têm problemas com drogas ou álcool, por exemplo.”
O cacique Juliano, da aldeia Tekoa Ka’aguy Mirim, concorda. “Eu acho que é melhor estar aqui dentro da igreja do que bebendo por aí…”, admite.
Todos esses conflitos estão longe de ser esporádicos, como recorda uma liderança de aldeia também chamada Piaçaguera que, da mesma forma, preferiu não ter seu nome publicado. “Isso vem lá da época do Bananal…”.
‘Sou um índio e quero servir a Cristo’
“Época do Bananal” é, mais do que uma lembrança constantemente evocada pelos indígenas, um conflito existencial definitivo para o território Piaçaguera — porque foi o que lhe fez nascer.
Na metade do ano 2000, quando as igrejas evangélicas ainda começavam a crescer entre as comunidades indígenas ao redor de Peruíbe, um grupo já convertido liderado pelo cacique Davi Honório (que era reconhecido pela Funai) foi expulso da aldeia Bananal, na terra indígena Peruíbe, demarcada em 1994 e vizinha à hoje Piaçaguera, por outro grupo, encabeçado pelo também cacique João Gomes.
Segundo uma reportagem da época do jornal A Tribuna, de Santos (SP), foi um “tumulto” que “teve como saldo três imóveis incendiados e agressões físicas entre os índios [sic] dos dois lados”.
Gomes aparece no texto do jornal indicando um ponto de não retorno, porque, entre algumas coisas, “não admitia a imposição da religião evangélica na aldeia”. Outros veículos da imprensa local reportaram como houve uma divisão na cidade entre quem apoiava Gomes e quem estava ao lado de Davi.
A primeira interferência da Funai, então, foi para tentar dividir a aldeia Bananal em duas partes iguais: uma liderada por Davi e outra por Gomes, mas, como eles mantinham plantações uns nas áreas dos outros, a ideia foi descartada.
Assim, em julho daquele ano, após várias reuniões, o cacique Davi aceitou uma transferência assistida para a Jureia — uma área imensa de Mata Atlântica transformada em reserva de proteção em 1986, do outro lado de Peruíbe e que toca no Estado do Paraná.
“Mas alguns indígenas não quiseram ir para lá”, conta o agente que atua na região. “Foi ali quando começou o Piaçaguera.”
Essa é, de fato, a versão reconhecida pela própria Funai: o órgão diz que, em 2000, alguns dos expulsos da aldeia Bananal não seguiram Davi Honório rumo à Jureia, mas fundaram novas comunidades na grande faixa de floresta nativa que separa Itanhaém e Peruíbe, já conhecida à época pelo nome Piaçaguera (porto velho, em tupi).
Foi dali que também começou — concordam tanto fontes oficiais quanto informais — a disputa pelo reconhecimento da terra pelo governo e, em paralelo, quando as igrejas evangélicas se estabilizaram sobre ela.
“Foi uma demarcação de fé”, observa Gleison Silvano, da Tekoa Kwaray (ele não revelou seu nome indígena) e que vivia na Bananal, lembrando do esforço coletivo para ter a terra demarcada.
De certa forma, observa, o território de hoje é herança do conflito: os evangélicos, aliados de Davi, abriram espaço para os primeiros templos. Os que ficaram ao lado de João Gomes estão nas aldeias mais resistentes.
A tensão, óbvio, nunca acabou. Ao contrário, se intensifica e se materializa desde então. Robson Miguel lembra, por exemplo, de quando Ubiratã, pastor-cacique da Tekoa Kwaray, começou seu percurso cristão na aldeia onde nasceu, a Piaçaguera.
“Ele fazia os cultos na casinha dele. Os índios [sic] iam lá para ver o que era aquilo, o que estava acontecendo…”, conta Robson.
“Daí um pessoal da Funai começou a reunir indígenas que não estavam aceitando [os cultos]. Eram pessoas que falavam que aquela música não era nossa, coisas assim. E o Ubiratã foi uma benção. Ele falou: ‘eu sou um índio e eu quero servir a Cristo!’. E por isso foi expulso de lá.”
A Funai, por meio da sua coordenação local, sediada em Itanhaém, nega que tenha feito qualquer movimento contrário às igrejas no território. O órgão afirma que ele é de usufruto dos indígenas e que não faz nem nunca fez determinação alguma sobre como eles devem viver.
Uma liderança da aldeia Piaçaguera lembra da mesma cena descrita por Robson: “Ele [Ubiratã] queria montar a igreja dele aqui, mas a comunidade não deixou. Vai muito de encontro com o que a gente acredita. Sem contar que muita gente lembrou da época do Bananal, né?”.
Já o pastor-cacique Ubiratã não gosta de lembrar. Quando perguntado sobre o que aconteceu, de fato, ele respira com força e repete: “Passei muita dificuldade…”.
O conflito foi tão profundamente existencial que trouxe à tona uma identidade “tupi-guarani”. Ao menos nas pesquisas acadêmicas, não era um nome conhecido: fontes dessa reportagem como Ubiratã, Javã e Gleison, por exemplo, se dizem tupi-guaranis, inclusive, para se contrapor aos guaranis com quem eles convivem.
“Mas, na classificação acadêmica, não se distingue tupi-guarani como a língua de um grupo específico”, explica Thomas Finbow, do Departamento de Linguística da USP, “mas como um ramo da família de línguas tupi, que abrange umas 40 variedades.”
Segundo ele, o que as pesquisas — feitas por estudiosos não indígenas, ele enfatiza —, mostram que, à medida que as igrejas foram crescendo pelo território, ainda nos anos 1980, um grupo guarani chamado, também por estudiosos, de nhandeva, passou a se chamar de “tupi-guarani” para se diferenciar dos guarani mbya, que são, de fato, mais conservadores (como Javã considera o sogro, Juliano).
“Os guaranis nhandeva têm a ideia de que são ‘pessoas misturadas’, e daí vem essa denominação de ‘tupi-guarani'”, prossegue Finbow.
“Na classificação acadêmica, a língua que eles falam é guarani, que é um ramo do tupi-guarani, da família de línguas tupi”, explica.
Vez ou outra, o conflito de 2000 volta à tona, e não como memória, como bem experimentou a missionária Luzia Coelho, da Igreja Batista.
Em outubro do ano passado, ela e o marido foram à aldeia Bananal (que hoje tem 35 pessoas, segundo a Sesai) para organizar uma festa por ocasião do Dia das Crianças. Para tanto, organizaram uma caravana com mais 40 irmãos e irmãs de São Paulo que ficaram responsáveis por doar alimentos e brinquedos, mas, ao chegarem lá, dizem que o cacique local “implicou”.
“Porque nós somos evangélicos”, reclama ela. “Ele não queria nem que a gente orasse pelas crianças da comunidade. Foi um atrito. Mas daí, movidos pelo Espírito Santo, nós conseguimos contornar tudo e fazer a festa.”
A reportagem não conseguiu contato com a liderança da Bananal para ouvir sua versão.
Um mesmo Deus?
No começo de março, o diácono Javã, que dirige os cultos da aldeia Tekoa Ka’aguy, estava bastante alvoroçado. Ele havia escutado alguém falar sobre uma Bíblia traduzida para o “tupi” circulando pelo Piaçaguera. “Poxa, é meu sonho!”, disse ele.
De fato, não é um livro fácil de se achar: embora José de Anchieta (1534-1597), outro jesuíta fundamental na catequização de indígenas, tenha feito traduções de partes dos textos bíblicos para o tupi antigo ainda no século 15, o que se encontra na Internet hoje é só uma edição de 2004 da Sociedade Bíblica, e em guarani.
Javã, “tupi-guarani”, reclama que os guaranis (mbya) têm dificuldade em crer no Deus cristão — ainda que as divindades sejam as mesmas. “Para nós, Nhanderu e Deus é a mesma coisa”, ensina, “porque estamos falando basicamente do criador do céu e da Terra.”
Nhanderu, de fato, é o “deus” guarani. Aquele que fez o mundo e depois, ao se ver sozinho nele, criou a mulher como companheira, é Nhanderu.
A diferença se dá aí, explica Javã, porque enquanto os “guaranis”, se referindo aos mbya, acreditam em outras divindades, como Tupã, também um Nhanderu, ou Jakaira, outro Nhanderu, os evangélicos creem somente na Trindade — Pai, Filho e Espírito Santo — reunidos em um só Deus.
“Para eles”, diz Javã apontando para Juliano, “existe o deus do sol, da água, da pedra, da cachoeira… A gente fica meio assim com esses deuses todos. Eu creio em um único Deus!”
Gleison Silvano, professor na aldeia Tekoa Kwaray e membro da Oy Djaporanduá, igreja de Ubiratã, se surpreende como alguns ministérios evangélicos não entendem que Deus e Nhanderu são o mesmo e chegam às aldeias tentando coibir práticas comuns, como pintar o corpo ou usar cocares.
“Aí falam que a gente mexe com espíritos, com essas coisas, o que não é verdade: apenas temos outro nome para chamar o Espírito Santo. Dá muita confusão”, analisa.
Se é assim, então, não haveria diferença também entre a casa de reza (opy) e o templo cristão. “O opy é a nossa igreja. Onde a gente canta para Deus, onde a gente compartilha tudo, onde vão os velhos e as crianças, onde a gente se diverte. É a nossa casa de oração”, define.
Se na Tekoa Kwaray a igreja ocupa o centro da vida religiosa, sem nenhuma casa de reza, outras aldeias têm equilíbrios distintos.
Duas que a BBC News Brasil visitou tinham um templo evangélico e, não tão longe, a casa de reza. Uma delas, a do cacique Juliano, conseguiu até estabelecer uma convivência pacífica entre ambas.
“Eu vou à casa de reza para os rituais, e os evangélicos vão ao culto. Sem problema. Um não atrapalha o outro”, afirma o cacique.
Mas, em outra aldeia visitada, onde só há a casa de reza, a tensão cresceu depois que uma igreja evangélica cogitou iniciar o mesmo processo de erguer um templo. Por ora, o opy permanece único ali.
Estudos antropológicos já mostraram como a tradução do cristianismo feita pelos jesuítas, quando da chegada ao futuro Brasil, explicam parte da questão.
Há certo consenso que, ao alçarem Tupã a Deus, os católicos portugueses se viram não só obrigados a criar uma Virgem Maria, Tupansy, como percebeu Alfredo Bosi, um dos linguistas mais importantes do país, como também tiveram que estabelecer a força oposta — o mal, o demônio, que não existia na cosmologia indígena.
Anchieta, no século 15, escolheu Anhanga, um Nhanderu protetor da selva, mas que “atormentava seres humanos”, para esse papel. No Piaçaguera, a discussão parece longe de se esgotar.
No último dia da visita da BBC News Brasil à aldeia Tekoa Kwaray, em Peruíbe, o pastor-cacique Ubiratã Silva cantava um louvor dentro do templo acompanhado por um dos filhos, Leonardo, que o tocava, suavemente, no teclado.
À medida que a canção avançava, ele louvava mais alto, já quase gritando, exigindo que o garoto mudasse o tom dos acordes à revelia da melodia. Quando ambos terminaram, Ubiratã tirou o celular do bolso, colocou-o defronte de si mesmo e começou a fazer uma saudação.
“Me sigam aí para mais louvores”, disse, antes de encerrar a gravação. Então, ele se justificou, mesmo antes que fosse perguntado. “Agora vou começar a pregar no TikTok. Vai ser benção!”