Era 30 de abril de 2024. Os rios subiram e a água invadiu a casa de diversas famílias no Rio Grande do Sul. Mais de 470 municípios foram afetados, 180 óbitos registrados, 27 desaparecidos e 806 feridos. Mesmo após um ano do desastre socioambiental, Enzo, de 5 anos, ainda lembra de seus animais mortos afogados e da casa que teve que deixar para trás. Assim como ele, outras 120 crianças tiveram a residência inundada, somente em Sinimbu.

A enchente causou estragos materiais mas, também, deixou marcas psicológicas. Se não cuidadas, estas cicatrizes podem virar consequências a longo prazo, principalmente para aqueles que estão no início da vida. Enzo, por exemplo, que teve a casa completamente destruída, não encara mais a chuva com a mesma tranquilidade. “Faz umas duas semanas que ele teve pesadelo. Acordou de madrugada chorando e falou que o rio estava chegando aqui”, conta Beatriz Silva, de 42 anos, mãe do menino. Desde o acontecido, a família mora de aluguel em um apartamento longe do rio.
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Muitas vezes, os pais têm dúvidas do quanto seus pequenos entendem sobre tragédias e se devem falar sobre o assunto com eles. A psicóloga Angela Rothmund, coordenadora do Curso da Universidade de Santa Cruz (Unisc) em Montenegro, destaca que crianças de todas as idades têm consciência quando vivem determinada situação, seja pelo acontecimento em si, ou pelo comportamento das pessoas ao redor. A diferença é o quanto elas compreendem sobre o que causou aquilo.
Além disso, o relato de Beatriz sobre o filho é um exemplo de como um evento traumático pode seguir presente nos mais novos, mesmo tendo se passado meses do acontecimento. No entanto, cada criança pode reagir de um jeito: desde brincadeiras e tranquilidade até uma mudança de comportamento que pode envolver medo, angústia, problemas de concentração e sono.
A reação também pode ser inesperada, como menciona a psiquiatra e professora da Unisc, Vanessa Heidemann Moura: “Vamos usar como exemplo uma criança que viu um primo vítima da enchente com roupas molhadas e muito assustado. Ele pode passar a ficar irritado com esse primo mesmo sem motivo. As crianças menores fazem isso pois não têm repertório, então choram, batem, mordem”.
Por isso, a necessidade primordial é de conversar sobre o ocorrido. Ajudá-las a traduzir esses sentimentos e, ao mesmo tempo, impor o limite entre a tristeza e a agressão. Também, monitorar essas reações mesmo após o ocorrido. A psicóloga Angela Rothmund explica que a criança pode não associar necessariamente o trauma à enchente, mas às consequências do fato que vão ocorrer depois. Por exemplo, a perda de um espaço de conforto, um colega que mudou de cidade e não faz mais parte da rotina, um familiar que era presente e não está mais.
Quando as reações precisam de atendimento profissional
O sentimento de medo, angústia e tristeza acaba por ser comum para qualquer pessoa nesta situação. As manifestações podem, inclusive, fazer parte do que a Sociedade Brasileira de Pediatria chama de “reações psicológicas agudas”. Elas costumam durar cerca de um mês.
Já a regressão dos sentimentos pode acabar por se associar a outras doenças, entre elas, ao Transtorno de Estresse Pós-Traumático, comum para pessoas que viveram uma situação com perigo de morte, segundo a Universidade de São Paulo (USP).
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“Não dorme mais sozinho, passou a fazer xixi na cama, coisas que gostava de fazer não faz mais, não fica longe da mãe e do pai, pediu para voltar com o bico”, são alguns exemplos citados pela psicóloga Angela Rothmund. O medo, desinteresse em participar de atividades, incapacidade de sentir sensações positivas, irritabilidade, hiperatividade e problemas de concentração e sono também podem ser sinais.
Ainda, a criança pode não lembrar de detalhes do evento, mesmo assim, evitar objetos e lugares que se associam a ele. “A cognição também pode ser afetada. Às vezes, a criança não lembra de detalhes e pode passar a sentir culpa, ter medo do perigo, raiva e vergonha”, analisa a psiquiatra Vanessa Moura. Além disso, crianças que já tinham um histórico depressivo podem ser mais afetadas do que outras.
Quando esses sinais começam a prejudicar as experiências e a rotina é preciso que a família busque suporte profissional. Neste momento é que entra o papel do psicólogo e do psiquiatra. No geral, o primeiro grupo de especialistas vai buscar dialogar e entender quais indícios a criança apresenta, enquanto o segundo costuma realizar o tratamento combinado com medicação e terapia.
“Crianças que têm um trauma, por vezes irão melhorar com terapia, inclusive se essa for iniciada com brevidade. Em outras, porém, o sofrimento é tão intenso, que a medicação se torna uma ferramenta a mais que alivia a dor e ajuda a ‘mexer nas feridas’”, salienta a psiquiatra.
Como falar sobre o ocorrido?
O simples ato de conversar sobre o que aconteceu pode beneficiar a compreensão da criança sobre a enchente e, logo, que ela se sinta mais à vontade e confortável para entender os próprios sentimentos. “Quanto menor a criança, maior a importância de denominar os sentimentos dela. Como podem haver diversas manifestações, é fundamental que os pais sempre a acolham”, reforça a psiquiatra Vanessa Heidemann Moura.
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Explicar de forma clara, direta, sem criar pânico, também pode ser imprescindível para salvar as crianças, principalmente para aquelas que moram em regiões em que enchentes ou deslizamentos são comuns. Ela precisa entender que ações tomar em caso de chuva ou acontecimento semelhante.
Também, é preciso respeitar os limites destes jovens segundo o Centro Interdisciplinar de Pesquisa e Atenção à Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mostrar-se aberto para conversar, mas não pressionar que eles falem, se não estiverem confortáveis para isso. O mesmo grupo separou uma série de materiais que auxiliam a comunidade a falar de forma didática sobre o ocorrido, entre eles, o livro “Uma Chuva Diferente”, de Nicole Carvalho, Mirella Prando e Lisiane Mota; e “O que está acontecendo no Rio Grande do Sul?”, de Cláudia Zirbes.
Aliás, não somente aquelas que viveram as enchentes precisam ser informadas. Isso porque, ao entenderem o que aconteceu, podem ser ponte de acolhimento dos colegas e amigos que perderam itens pessoais e viveram o momento de terror.
E, por isso, a importância do tema ser debatido não somente em casa e sim em instituições como as escolas e outros locais que os jovens frequentam. Visto que “os adultos também passaram por isso e muitos também têm dificuldade de falar sobre eventos traumáticos, mas como comunidade a gente se fortalece falando sobre o que aconteceu”, frisa a psicóloga Angela Rothmund.
A profissional também especifica que cada idade possui uma forma diferente de lidar. Para bebês de colo não há preocupação de explicação, o importante é que ele seja protegido diante daqueles acontecimentos. Já crianças de 4 a 5 anos precisam ter conversas de forma lúdica, com brincadeiras e livros. Acima de 6 anos, as crianças já identificam as perdas, então os responsáveis devem responder com honestidade conforme as perguntas feitas. Por fim, pré-adolescentes acima de 12 anos devem ter espaço para uma conversa mais aprofundada sobre os sentimentos do ocorrido.

Nas escolas, um espaço de acolhimento e integração
As escolas são um importante ponto para auxiliar no desenvolvimento e acolhimento. Isso porque, além de ser um espaço em que o jovem passa grande parte dos dias, o evento traumático também pode atingir o rendimento do aluno. “Uma criança que estava frequentando a escola, após o trauma pode não querer ir por dificuldade de se separar da figura de apego, por medo de perdê-la, ou por medo que algo ruim vai acontecer”, explica a psiquiatra Vanessa Heidemann.
Trabalhar no desenvolvimento pós-enchente do aluno no espaço é importante para que a escola não acabe por se tornar mais um local de gatilho, visto que muitos jovens não só viram a casa atingida mas, também, livros, cadeiras e classes de suas instituições totalmente dilaceradas pela enchente. É o caso da Maria, de 9 anos, moradora do Bairro Várzea, em Santa Cruz do Sul, e estudante da Escola Municipal de Ensino Fundamental Guido Herberts, localizada na mesma região.
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Na madrugada do dia 30 de abril ela dormia com a mãe quando foi acordada por um vizinho que batia à porta. Ao saírem da cama, mãe e filha viram a água já invadindo o quarto. Maria foi levada para uma casa mais alta, de um vizinho, aos gritos de desespero, enquanto sua mãe voltou para pegar os animais de estimação. “Minha filha gritava muito, tirei ela e fomos embora. Quando olhei para trás, era muita água. Isso abalou eu e minha filha, até hoje, em época de chuva, ela se desespera, preciso buscar ela na aula”, conta Lucimara Santos, de 54 anos, mãe da Maria.
Enquanto teve que sair às pressas de sua casa, seu outro lar, a escola, se tornou QG temporário para desabrigados. No entanto, por volta das 9 horas da manhã do dia 30, as famílias foram levadas para o abrigo montado no Parque da Oktoberfest porque a estimativa era de que a água invadisse a escola.


E a previsão aconteceu. “Perdemos a biblioteca, a sala de informática, o refeitório, estava tudo virado, tudo. Computadores, livros, perdemos também. A única coisa que permaneceu foi uma mesa de madeira antiga”, conta a professora Marilei Soares Grigoletti, de 52 anos, que leciona Educação Física no educandário.
As aulas foram retomadas por volta do dia 15 de maio. Com doações e apoio da comunidade, a Guido Herberts se restabeleceu. Há um ano do evento, com marcas nas paredes de onde a água chegou, são muitos os momentos em que os professores precisam tranquilizar os alunos. “Até hoje tem alunos que quando chove enchem os olhos de água. Quando estou ali na quadra e começam raios e trovões eles me questionam: ‘será que vai vir de novo?’ Pedem para ir embora, ‘professora, me leva para casa, me dá uma carona’”, conta Marilei.

Na rotina, Marilei tenta abordar o acontecimento de uma forma mais leve, para que seus estudantes tenham oportunidade de expor os sentimentos. Além disso, sempre que uma criança não se sente bem, a direção entra em contato com a família para repassar as informações e entender o ocorrido.
Já a Escola Municipal de Ensino Fundamental Nossa Senhora da Glória, em Sinimbu, onde Enzo estuda, ficou 45 dias sem aulas. A equipe escolar não sabia em que situação receberia os alunos. Então, utilizou o tempo para se preparar. Durante as primeiras semanas, a prioridade era dialogar e entender o que cada um havia passado e sentido.

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E o assunto enchente virou um ponto de abertura para abordar a valorização do meio ambiente, que contou com o apoio de material didático para auxiliar os pequenos a entender o que tinha acontecido. “Nós recebemos doação de um livro que falava sobre a chuva. Ele foi trabalhado junto com outros jogos e atividades. Recentemente, no dia 22 de março, tivemos o dia da água e a questão da enchente voltou, com os cuidados e a poluição. Tudo foi retomado”, conta a diretora da escola Claisi Goetze Behling, de 44 anos.
A diretora também enfatiza que além das conversas e aprendizados, aquelas crianças que apresentavam problemas foram encaminhadas para atendimento psicológico e que, em muitas, ainda é diagnosticada essa necessidade. Isso foi possível com a ajuda de profissionais da saúde mental que, segundo a Lei 13.935 de 2019, são obrigatórios nas redes públicas de educação básica.
Para que estes alunos se sintam amparados e tenham o acompanhamento necessário se torna imprescindível o auxílio de profissionais para acolher os estudantes. A 6ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), responsável pelas escolas públicas estaduais de 18 municípios da região, possui 85 escolas e um núcleo prisional sob seus cuidados. Em 33 educandários, há estagiários de psicologia distribuídos nas cidades de Santa Cruz do Sul, Encruzilhada do Sul, Candelária, Venâncio Aires, Sobradinho, Rio Pardo e Vera Cruz.

As outras 52 escolas possuem o auxílio da Unisc, de dois estagiários atuando na Coordenadoria, além do Núcleo de Cuidado e Bem-Estar Escolar, onde trabalham quatro profissionais para prestar apoio a toda rede (uma psicóloga, um assistente social, orientadora e assistente pedagógico). Quanto aos orientadores educacionais o número de profissionais varia entre um a três por escola, a depender da quantidade de estudantes. Eles “têm o papel de apoiar o desenvolvimento integral dos alunos, tanto no âmbito escolar quanto no pessoal e social”, segundo Lucijane Ferreira, coordenadora-adjunta da 6ª CRE.
*As famílias autorizaram a identificação dos menores de idade que são descritos na matéria, porém, a reportagem optou por não expor o sobrenome e imagens das crianças.
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