Jovem pardo perde vaga de cotista na Rural, tenta recorrer e fracassa: ‘Fiquei me sentindo um impostor’, diz


Justiça alega que não cabe a ela rever a decisão administrativa da universidade, mesmo com Ministério Público sendo favorável à apelação do candidato. Servidores da banca avaliadora da UFRRJ precisam comprovar que são capacitados na área étnico-racial. Lucas Oliveira teve a matrícula negada em vaga de cotista pela banca de heteroidentificação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
Arquivo Pessoal
“Fiquei me sentindo um impostor, como se a minha vida até ali tivesse sido uma mentira.” A frase é de Lucas Oliveira, um rapaz pardo que teve a matrícula negada pela banca de heteroidentificação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Ele havia sido aprovado no curso Turismo pela modalidade de cotas raciais.
O jovem passou por duas avaliações presenciais com a banca e recorreu judicialmente duas vezes. Em todos os casos, o recurso foi negado. A Justiça alega que não cabe a ela rever a decisão administrativa da universidade, mesmo com o Ministério Público Federal sendo favorável à apelação do candidato de 29 anos.
Lucas contou ao g1 que nunca imaginou que seria lido como branco pela banca da universidade. Como uma pessoa que se autodeclara parda, ele relata que sempre viveu em um lugar de ambiguidade racial: muito claro para ser lido como negro e muito escuro para ser lido como branco.
“Eu nunca tive dúvida da minha autoidentificação, pois meu pai é negro e minha mãe também é uma mulher parda. A minha vida sempre foi composta por microagressões. Sempre me confundiam com entregador, algum prestador de serviço e isso previamente sem eu ter falado nada”, diz.
Segundo a UFRRJ, a banca de heteroidentificação é composta por três servidores que precisam comprovar que participaram de capacitação específica na área étnico-racial. Há ainda uma banca recursal, formada por outros três servidores em caso de indeferimento da primeira banca.
Lucas foi reprovado em ambas as bancas. Ele explica que ao ser questionado quais características utilizava para se considerar pardo, respondeu que possui traços característicos de uma pessoa negra.
“Eu disse para a banca: meu tom de pele, meus traços faciais e principalmente o nariz, esse que sempre foi a causa do bullying que sofri na adolescência. Quando deixei meu cabelo bem grande foi o período em que mais recebi olhares diferentes e um tratamento mais hostil”, diz o rapaz.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pardo é quem se identifica com mistura de duas ou mais opções de cor ou raça, incluindo branca, preta e indígena. O Censo 2022 mostra que esta categoria passou a ser o maior grupo racial do país, com cerca de 45,3% da população.
Beatriz Bueno, produtora cultural e pesquisadora sobre parditude (termo que se refere à identidade e cultura dos pardos) da Universidade Federal Fluminense (UFF), afirma que faltam instruções para as bancas avaliadoras universitárias sobre características ambíguas de pessoas pardas e métodos para avaliá-las.
“É preciso evoluir muito na política em relação ao reconhecimento das pessoas pardas. Os critérios devem ser diferentes para pardos e pretos, levando em consideração a regionalidade da pessoa que está se autodeclarando.”
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Por ser filho de mãe parda e pai negro, Lucas diz que nunca teve dúvida de sua autoidentificação racial
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Depois de duas negativas nas avaliações presenciais no campus da universidade em Seropédica, Baixada Fluminense, Lucas optou por levar o caso para a Justiça, com a esperança de assegurar seu o direito de acesso ao ensino.
Entretanto, o rapaz perdeu o processo em primeira instância. Ao recorrer em segunda instância, o Ministério Público Federal emitiu um parecer favorável à apelação e, mesmo assim, o desfecho foi negativo.
A sentença, emitida pela 4ª Vara Federal do Rio de Janeiro, diz que não cabe ao judiciário questionar decisões de cunho administrativo. Cristiane Magalhães, advogada de Lucas, se disse surpresa com a decisão e alega que existem outros casos idênticos em que houve o reconhecimento da falha da administração pública.
“O Ministério Público, que é legitimado como fiscal da lei, foi favorável à procedência da ação. Em meus 14 anos de prática advocatícia, nunca me deparei com um julgamento contrário ao parecer do Ministério Público, o que fez a decisão desfavorável causar ainda mais perplexidade”, conta a advogada.
A manifestação do MP diz que quando existe dúvida sobre o fenótipo apresentado pelo candidato, a autodeclaração deve prevalecer. O que, segundo Lucas, não ocorreu na decisão da banca da UFRRJ.
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“Existem descendentes de negros que têm cabelos lisos naturais, como a cantora Preta Gil, enquanto existem pessoas como a também cantora Vanessa da Mata que têm a pele branca, mas os traços do rosto e cabelos demonstram sua ascendência negra. E não podemos nos esquecer de incluir descendentes de indígenas, que em maioria têm cabelo liso e fazem parte da porcentagem de pardos de nosso país. Na hora de julgar quem tem direito ou não à cota, é preciso levar esses diversos fatores em conta. Estamos no Brasil, um país reconhecido mundialmente pela miscigenação”, explica Beatriz Bueno.
Lucas ainda não sabe se pretende recorrer e levar o caso ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
“É bem desanimador. Eu estava confiante porque o Ministério Público me reconheceu. Agora, eu estou avaliando se vou recorrer, já que vou prestar o Enem novamente esse ano”, diz.
*Estagiária, sob a supervisão de João Ricardo Gonçalves
Lucas relata que sempre viveu em um lugar de ambiguidade racial
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