Mario Quintana iluminado

Querido e admirado pelos gaúchos, celebrado pelos leitores brasileiros em geral, Mario Quintana, nascido em Alegrete em 1906, enfim ganhou biografia que repassa sua vida e sua obra. E, veja só, não é assinada por um conterrâneo, e sim por um carioca. Coube ao escritor Gustavo Grandinetti, também desembargador aposentado, preencher lacuna que persistia por mais de três décadas, desde o falecimento do poeta, em 5 de maio de 1994, em Porto Alegre.

O passarinho do contra: uma biografia de Mario Quintana foi lançado no ano passado, pela Tordesilhas. Desde então, registra ampla repercussão, com o lançamento na Feira do Livro da capital, em novembro. Nas livrarias, o exemplar custa R$ 66,90.

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Grandinetti efetiva homenagem sem dúvida à altura do biografado. Além de evidenciar conhecimento e domínio profundos da obra de Quintana, empenhou-se em consultar acervos, públicos ou particulares, que propiciassem aproximação ao poeta, manuseando documentos e materiais.

Gustavo Grandinetti, o autor da biografia

E, claro, conversou com muitas pessoas que conviveram com Quintana. Entre essas, veio a Santa Cruz do Sul para entrevistar a fotógrafa Dulce Helfer, notoriamente uma das grandes amigas do poeta, de quem fez diversos registros exclusivos (dentre os quais a foto de Quintana que ilustra a capa do livro).

A biografia ilumina de forma eficiente as diferentes etapas da formação e da atuação profissional de Quintana (com destaque para sua temporada no Correio do Povo), bem como a composição de seus versos. Não se esquiva de temas mais íntimos (a solteirice, por exemplo) e mira sempre a verdade.

Desde a estreia com A rua dos cataventos, em 1940, o poeta assinou quase três dezenas de obras que se firmaram no imaginário dos leitores, com prosa poética marcada por lirismo, humor, leveza e ironia. Agora, ler e reler Quintana torna-se ainda mais prazeroso tendo como guia ou suporte esse precioso ensaio biográfico, digno de reportagem ampla e panorâmica, proporcionado por Grandinetti.

FICHA

O PASSARINHO DO CONTRA: uma biografia de Mario Quintana, de Gustavo Grandinetti. Rio de Janeiro: Tordesilhas, 2024.
256 p. R$ 66,90.

Gustavo Grandinetti

Em que momento, e por que, surgiu a ideia de efetivar essa biografia do poeta Mario Quintana?

Acho que posso dizer que minha primeira vocação foi ser escritor, como a de muitos adolescentes e jovens, mas tive de deixar esta vocação de lado para ganhar a vida. Fui fazer Direito e me realizei muito como defensor público, depois magistrado e, desde sempre, professor universitário. Em 1985, no início de minha carreira como defensor público ainda cheguei a ganhar menção honrosa da União Brasileira de Escritores por um romance, ainda inédito, mas depois disso parei de escrever. Somente depois que me aposentei da magistratura pude encontrar tempo para retomar aquela vocação e o fiz passeando pelos vários gêneros literários. Assim, em 2018 publiquei um livro de crônicas (Por Trás da Venda) e em 2021 publiquei um romance (Romances no Trem da História). Foi depois do romance que passei a pensar em escrever uma biografia de algum brasileiro que tivesse sido importante para mim e para a literatura. Não demorou muito para eu chegar no Mario Quintana, o poeta brasileiro com quem mais me identifiquei. Já havia lido quase todos os livros dele, ao longo de muitos anos.

Comecei investigando se já havia uma biografia sobre ele e descobri que não havia. Encontrei bons trabalhos parciais sobre ele, especialmente sobre a obra dele, mas uma biografia, não havia. Assim, retomei a leitura de seus poemas, ao mesmo tempo em que comecei a buscar informações. Descobri que o acervo do Poeta está no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, e a proximidade do Instituto à minha casa facilitou muito a minha pesquisa.

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Foi para perpetuar a memória de um dos mais importantes poetas brasileiros que me dediquei a sua biografia; para que os mais jovens possam descobrir o Mario, que continua absolutamente atual; para que sua memória e sua rica obra literária não se perca.

O senhor comenta, no livro, que mais de uma pessoa, e em mais de uma ocasião, de certo modo havia sido designada ou destacada para biografá-lo. Acabou sendo um carioca a fazê-lo. Foi um grande desafio?

O Mario havia escolhido uma jornalista para escrevê-la, a Eloí Calage, com quem ele tinha uma relação amorosa. A Eloí declinou da indicação porque soube que a professora de literatura Tania Carvalhal estava pesquisando para escrevê-la. Acontece que as duas faleceram e a biografia não foi escrita.

A sobrinha-neta de Quintana e seu braço direito – Elena Quintana – também reunia todos os requisitos para escrevê-la, mas faleceu e não o fez. Aí tomei para mim esta missão.

Para acentuar o lado trágico desta missão ainda aconteceu algo muito triste. Logo no início da pesquisa, contratei uma jovem estudante universitária de literatura, de Porto Alegre, para fazer tarefas locais, já que eu moro no Rio. Infelizmente, cerca de dois meses depois de contratada ela foi atropelada e faleceu.

Cheguei verdadeiramente a pensar que o destino conspirava contra a biografia do Mario Quintana. Por isso, acho que o maior defeito do livro foi ter sido escrito com pressa, porque eu fiquei com receio de algo acontecer e a biografia não sair. E, de fato, tive muitas dificuldades. Embora tenha conseguido terminar de escrevê-la, a obra foi recusada explicitamente por várias editoras, ou simplesmente elas não me respondiam. O livro só saiu porque me considero uma pessoa obstinada. A cada recusa, eu enviava o livro para outras e mais outras editoras, até que a Editora Tordesilhas aceitou o trabalho.

Esse foi o maior desafio, juntamente com a dificuldade causada pela pandemia, que interrompeu a pesquisa, restringiu muito a minha mobilidade, as visitas ao Instituto, as viagens ao Rio Grande do Sul. Enfim, essas foram as maiores dificuldades.

Em que momento ocorreu o seu envolvimento com a obra de Quintana e o que ela representa na formação do senhor? O que mais o marcou nela?

Como disse antes, sempre fui um leitor do Mario. Não me lembro exatamente com que idade li o primeiro poema de sua autoria, mas posso garantir que fui conquistado.

O que me marcou foi uma certa delicadeza, graça, humor ao tratar dos assuntos mais delicados e complexos: o sentido da vida, a morte, a passagem do tempo, o amor, uma filosofia do cotidiano, um olhar psicológico penetrante, a crítica social, enfim, a mestria dele ao construir seus poemas com meticulosa concisão. Seus textos não se estendem desnecessariamente, mas neles tudo está dito, ainda que com muitas reticências para que a imaginação do leitor os complete.

No levantamento de informações, o que mais o surpreendeu em relação a Quintana?

O que mais me surpreendeu foi descobrir a ambiguidade do Poeta em relação à carreira militar. Neto de dois heróis da Guerra do Paraguai, ele foi matriculado no Casarão da Várzea, o Colégio Militar de Porto Alegre, para seguir a tradição militar da família. Por lá passaram vários presidentes e vice-presidentes da República.

No entanto, ele não concluiu o curso, mesmo após quase cinco anos de caserna, porque foi reprovado em várias disciplinas. Aí voltou para Alegrete para trabalhar na farmácia do seu pai. Porém, em 1930, ele se alistou nas tropas de Getúlio Vargas e veio para o Rio como soldado da Revolução. Seis meses depois da posse de Getúlio, ele pediu baixa e voltou para Porto Alegre trabalhar como jornalista no jornal O Estado do Rio Grande do Sul. Em 1932 o jornal foi fechado pelo interventor Flores da Cunha, nomeado pelo mesmo Getúlio Vargas, por defender a revolução constitucionalista daquele ano, em São Paulo.

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Essa ambiguidade em relação à carreira militar, como se fosse uma dívida dele, não cumprida, contraída com a família, talvez tenha sido um dos motivos do seu absoluto silêncio em relação ao golpe militar de 1964. Diferentemente de outros artistas e literatos, Quintana se calou. Nunca criticou o golpe militar e, por isso, foi criticado por não ter engajamento político.

Como era o contato com o Rio Grande do Sul antes desse projeto? E com a literatura gaúcha em geral?

Sou um amante do Brasil e de sua rica diversidade. Procuro me informar sobre as várias tradições do País. Minha vida acadêmica, no Direito, me levou a viajar pelo Brasil de norte a sul, de leste a oeste, participando de congressos, dando aulas, integrando bancas etc. Só não tive oportunidade de conhecer dois estados: Piauí e Rondônia. Já tinha vindo algumas vezes ao Rio Grande do Sul, sempre para atividades acadêmicas. A sua história me encanta talvez pela sua posição geográfica de se constituir na fronteira sul do País e por ser a primeira resistência às invasões dos vizinhos castelhanos.

Os gaúchos e os acreanos, em sua grande maioria, são os brasileiros que sabem cantar os respectivos hinos estaduais.

Em relação à literatura gaúcho, como todo brasileiro, aprecio Érico Veríssimo e, obviamente, Quintana.

Esteve também em Santa Cruz do Sul, para conversa com a fotógrafa Dulce Helfer. O que a amizade com ela representou para Quintana?

A Dulce é encantadora. Mario a chamava de a “loira do plantão” porque ela o visitava após o seu plantão noturno no jornal em que trabalhava na época. Ele também brincava porque ela era esquecida, desligada e ele implicava dizendo que ela era muito precoce (porque o esquecimento é característica dos idosos).
Dulce tem várias fotos do Mario e me cedeu uma delas para a capa do livro. Eu gosto muito dessa foto porque o Poeta aparece segurando um copo d´agua e rindo com uma cara de sapeca.

Dulce, como os verdadeiros amigos do Quintana, têm um grande cuidado e respeito em relação a sua memória. Me propus a entrevistar os melhores amigos do Mario Quintana e o interessante é que acabei me tornando amigo deles também. O modo com que me receberam, o carinho, o interesse no sucesso da biografia, me tocaram profundamente. O livro também é uma homenagem a eles. Além da Dulce, dedico o livro ao Armindo Trevisan, Liane dos Santos, Sandra Ritzel e Sérgio Faraco.

O senhor já conhecia Santa Cruz? Como era sua relação com essa cidade e a região?

As duas primeiras vezes em que estive em Santa Cruz do Sul foi há muitos anos para atividades acadêmicas na Universidade de Santa Cruz do Sul, a convite do professor e desembargador Rogério Gesta Leal. Naquelas ocasiões, soube um pouco sobre a história da cidade, desenvolvida, inicialmente, pela plantação do fumo.

Voltei para entrevistar a Dulce Helfer, em 2021, logo que a pandemia permitiu.

Depois de Quintana, há interesse em empreender mais algum projeto nessa proposta da biografia?
Nossa ideia é adaptar a biografia para uma peça teatral, um monólogo, que, aliás, já está pronto. Estamos nos preparando para participar de editais de incentivo à cultura para levantar recursos para dar continuidade ao projeto.

Fora do projeto Quintana, terminei de escrever um livro de contos que tem o título provisório de Femina. Todos os contos têm em comum um mergulho na alma feminina e as principais personagens são mulheres, mas mulheres empoderadas. Nesse momento estou em busca de editoras interessadas.

Que expectativa alimenta do papel que a biografia pode cumprir em relação à memória e à obra de Quintana?

Creio que essa pergunta eu respondi ao longo da entrevista, mas posso sublinhar que o Quintana continua atual e continua um crítico social e, por isso, deve ser lido pelas gerações mais novas.
Cito alguns exemplos de sua atualidade. Vejam o que escreveu sobre educação: o analfabetismo é uma porta fechada. E ainda é assim.

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Quando o racismo ainda era algo escondido pela sociedade brasileira, ele escreveu: as almas não têm cor.
Numa época em que a violência contra a mulher ainda não ganhava a indignação da sociedade ele escreveu: As mulheres não foram feitas para amar, mas para serem amadas, ora bolas! Ninguém tem direito sobre ninguém, tudo depende da dignidade do ser humano.
Quando ainda não tinha surgido essa caça aos imigrantes, ele disse: as fronteiras foram riscadas no mapa/A Terra não sabe disso.

Por fim, numa época que ainda não tinham surgido os falsos moralistas, os religiosos hipócritas de uma infinidade de supostas igrejas, ele disse: Ah! esses moralistas…Não há nada que empeste mais que um desinfetante.

Termino com as mensagens de Quintana sobre o amor:
Amar é mudar a alma de casa.

Os que fazem amor não estão fazendo apenas amor: estão dando corda ao relógio do mundo.

Quintana continua dando corda no relógio do mundo.

Eternos quintanares

Oescritor Gustavo Grandinetti lança mão de uma metáfora que Mario Quintana explorou em um de seus textos em relação ao amor, mas agora para definir a importância e a permanência da obra do próprio poeta: “Quintana continua dando corda no relógio do mundo”, ilustra, na entrevista que concedeu para a Gazeta do Sul.

Satisfeito com a repercussão que seu livro, lançado em 2024, por ocasião dos 30 anos da morte de Mario, está tendo em todo o País, Grandinetti antecipou que a ideia é “adaptar a biografia para uma peça teatral, um monólogo, que, aliás, já está pronto”. E ele terminou de escrever um volume de contos, que tem o título provisório de Femina. “Todos os contos têm em comum um mergulho na alma feminina, e as principais personagens são mulheres, mas mulheres empoderadas”, explicou.

Mencionou ainda sua relação com o Rio Grande do Sul, inclusive com Santa Cruz. “As duas primeiras vezes em que estive em Santa Cruz do Sul foi há muitos anos, para atividades acadêmicas na Universidade de Santa Cruz do Sul, a convite do professor e desembargador Rogério Gesta Leal”, frisa. “Naquelas ocasiões, soube um pouco sobre a história da cidade e sua relação com o tabaco. Voltei para entrevistar a Dulce Helfer, em 2021, logo que a pandemia permitiu.”

Por fim, manifesta admiração pela cultura gaúcha. “Sou um amante do Brasil e de sua rica diversidade. Minha vida acadêmica no Direito me levou a viajar pelo Brasil, participando de congressos, dando aulas, integrando bancas etc. Só não tive oportunidade de conhecer dois estados: Piauí e Rondônia”, cita.
“Já tinha ido algumas vezes ao Rio Grande do Sul, sempre para atividades acadêmicas. A sua história me encanta, talvez pela sua posição geográfica de se constituir na fronteira sul do País e por ser a primeira resistência às invasões dos vizinhos castelhanos.” E menciona: “Os gaúchos e os acreanos, em sua grande maioria, são os brasileiros que sabem cantar os respectivos hinos estaduais.”

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