O que ocorreu na noite em que Santa Cruz perdeu seu taxista mais antigo

No ponto de táxi do pai, Álvaro senta e respira fundo. Lembrar dos momentos com o velho ainda dói, afinal de contas, é difícil aceitar que o destino impôs um final terrível para Alvá Alvino Assmann. Já são 14 anos em que a dupla não está mais junta, sentada no banco na esquina das ruas Marechal Floriano e Ramiro Barcelos, no centro de Santa Cruz do Sul.

Há muitas perguntas sem resposta sobre a noite trágica de 29 de dezembro de 2010. Alvá não resistiu após bater contra um muro durante uma corrida, e faleceu aos 79 anos, sendo 42 deles dedicados ao volante como profissional. Ainda hoje, o caso gera questionamentos em familiares e na geração de colegas que o conheciam por ser o taxista mais antigo da cidade. “E se ele não estivesse no ponto naquela hora?”, “E se esse criminoso estivesse preso e não em liberdade pelo indulto de Natal?”. A Gazeta do Sul volta no tempo para contar alguns bastidores dessa história, na 15a e última reportagem da série Casos do Arquivo.

Alvá Alvino Assmann

“Táxi é que nem pescaria”

O taxista Alvá Alvino Assmann nasceu e morou durante toda a vida em Santa Cruz do Sul. Dedicou 42 anos de sua história à profissão que amava. Era conhecido na cidade pela honestidade, a simplicidade e a confiança com os clientes. Chegou a trabalhar como mecânico e fiscal do Departamento Estadual de Estradas de Rodagem (Daer), mas na década de 1970 conseguiu um financiamento bancário para comprar um veículo, que mais tarde se tornou seu primeiro táxi.

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Ele iniciou o trabalho como “chofer de praça” nas imediações do que hoje é o Centro Administrativo Municipal, na Rua Coronel Oscar Jost. Ali, funcionava a usina municipal da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE). “Começou ali porque funcionava o telefone. Ele não tinha telefone fixo. O pai usava o da CEEE e os funcionários avisavam quando alguém ligava pedindo uma corrida”, diz o filho Álvaro Assmann, também taxista, hoje com 70 anos.

Fiat Siena de Alvá atingiu muro e ficou com a frente destruída e o para-brisa quebrado | Foto: Fotos: Rodrigo Assmann/Banco de Imagens/GS

Em 1971, porém, Alvá mudou o local de trabalho. Fixou-se em um novo ponto, na esquina das ruas Marechal Floriano e Ramiro Barcelos, que seria sua segunda casa por longas décadas.
“O pai foi o pioneiro nesse ponto. Quando veio para cá, não saiu mais. Aqui ele fez a vida dele”, disse Álvaro, segundo mais velho dos cinco filhos de Alvá e Selma. E a dedicação ao ofício era total.
“Ele trabalhava de domingo a domingo, nunca tirava férias. Dizia que isso era o ganha-pão dele, tinha que cuidar dos fregueses e tinha que ter carro aqui. Quando trabalhamos juntos, ele me falava um ditado: ‘meu filho, táxi é que nem pescaria, se não tiver anzol na água, não vai pegar nada’.” Álvaro conta que tão logo tirou a carteira de motorista, aos 18 anos, começou a trabalhar com o pai no ponto.

“Somos entre cinco irmãos, três homens e duas mulheres. Ninguém quis seguir a carreira do pai. Eu comecei logo aos 18 anos. Trabalhei em alguns outros lugares e em 1987 passei a atuar aqui no ponto de forma integral.” Os conselhos do pai também eram comuns, sobretudo após um motorista que trabalhava para ele ser assassinado na década de 1970, no Distrito Industrial.

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“Meu pai quase enlouqueceu por causa daquilo. Sempre me dizia para tomar muito cuidado, e se desconfiar de algo, não levar.” Embora tivesse a fama de ser curto e grosso, Alvá também era carismático e não abria mão de algumas paixões.

“Ele gostava muito de um churrasquinho. Sexta ou sábado de noite fazíamos aqui no ponto e ele adorava. Também gostava muito de futebol. Em primeiro lugar, o Avenida. Depois, o Grêmio”, recorda o filho Álvaro.

Relembre o caso

Grande quantidade de pessoas participou do funeral do taxista, em 30 de dezembro de 2010, no Cemitério Agnes, Bairro Country

Fazia calor na noite de 29 de dezembro de 2010, uma quarta-feira. Por volta das 20h30, Alvá era o segundo na fila do ponto. Após um colega sair para uma corrida, ele foi para o primeiro posto. Em seguida, um jovem que estava sentado em um banco nas imediações da Praça Getúlio Vargas, próximo a um antigo orelhão, pediu um transporte até o colégio Duque de Caxias.

Alvá seguiu na direção da Zona Sul. Na esquina da Avenida Deputado Euclydes Kliemann, já no Bairro Ana Nery (então chamado de Piratini), dobrou à direita, na Rua da Figueira – na época era uma conversão permitida, hoje é mão única. Na metade da quadra, mudou repentinamente a direção de seu Fiat Siena branco e bateu contra o muro de uma casa.

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Antes de parar, o carro ainda voltou de ré por cerca de dez metros e se chocou contra uma árvore no outro lado da via. Ali ele ficou. O jovem que estava na carona saiu correndo. Tinha um corte na cabeça. Moradores tentaram se aproximar para auxiliar, mas ele recusou ajuda e fugiu do local, sem dar detalhes sobre sua identidade ou o que tinha acontecido.

O carro ficou com a frente destruída e o para-brisa quebrado. O taxista apresentava uma marca na testa, que podia ter sido causada por uma coronhada ou ao bater contra o painel ou o próprio vidro. Alvá chegou a ser socorrido por uma ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Levado para receber atendimento no Hospital Santa Cruz, não resistiu e faleceu.

“Eu estava na região da antiga Cohab, de folga. Me ligaram e disseram que meu pai tinha sofrido um acidente e que era pra ir logo, que ele não estava bem. Cheguei lá e ele já tinha sido levado, e o carro estava no guincho”, comenta o filho Álvaro Assmann.

O taxista de 79 anos foi sepultado no dia seguinte, 30 de dezembro de 2010, no Cemitério Agnes, no Bairro Country.

Prisão rápida

Desde o momento da ocorrência, a Polícia Civil trabalhava com a linha investigativa de latrocínio (roubo seguido de morte). A suposta tentativa de assalto teria sido provocada durante a corrida.

O passageiro, ao anunciar o crime portando um revólver, teria feito com que Assmann perdesse o controle do veículo e batesse. Logo após o fato, os investigadores conseguiram o nome do jovem que havia solicitado a corrida com Alvá e fugido depois.

Em menos de 12 horas, em uma ação conjunta, Brigada Militar e Polícia Civil prenderam o acusado, de 19 anos, em um imóvel da Rua Adolfo Lamberts, na região do antigo Bairro Imigrante (hoje Santa Vitória). Condenado por assalto e cumprindo a pena no Presídio Regional de Santa Cruz do Sul, o rapaz havia recebido liberdade temporária da Justiça – o indulto de Natal – para passar as festas de fim de ano em casa.

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Estava solto desde 24 de dezembro de 2010. Cinco dias depois, segundo a apuração policial, aproveitou o tempo fora da cadeia para se envolver na ocorrência que teve resultado trágico.

Ouvido, ele admitiu em depoimento que estava no táxi de Alvá, mas negou que tenha tentado assaltar a vítima. Em uma época em que havia muito mais abertura na cobertura das reportagens policiais, a Gazeta do Sul chegou a entrevistá-lo na delegacia.

Indagado sobre a fuga do local do acidente, ele disse que se apavorou com a chegada de populares e decidiu sair de lá. “Não fui eu. Eu nego. Ele achou que eu ia sacar um revólver”, ressaltou o rapaz. Na entrevista exclusiva, a reportagem questionou o acusado sobre a dispensa para passar o final do ano em casa.

“Eu saí do presídio pra curtir o fim de ano na rua. Foi um erro, né cara? Quando é pra acontecer, não adianta. É só o destino”, respondeu. O repórter ainda perguntou se ele havia aproveitado o tempo livre para assaltar o taxista.

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“Não. Eu curti com a minha família nos primeiros dias e saí. Passeei, andei de bicicleta, fui no meu irmão. Mas aí na volta eu fui pro Centro e já era tarde, de oito e pouco pra nove horas. Peguei o táxi pra ir embora”, finalizou.

A investigação

Álvaro Assmann seguiu os passos do pai

Considerado hoje um dos mais experientes delegados da região, atual chefe da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco), Marcelo Chiara Teixeira estava há um mês em Santa Cruz na época.

O caso de Alvá foi um dos primeiros investigados por ele no município, pois tinha assumido de forma interina a 2ª Delegacia de Polícia (2ª DP) durante as férias do então titular, delegado Miguel Mendes Ribeiro Neto. Após pedido de Chiara, o juiz plantonista na ocasião, Assis Leandro Machado, determinou a prisão preventiva do acusado.

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Nos primeiros dias de janeiro, chegou o laudo do exame de necropsia, apontando que o choque do automóvel Siena contra um muro – acidente atribuído ao suposto assalto – foi o causador da morte do taxista de 79 anos. Informações coletadas pelos policiais na época indicavam que Alvá sempre afirmava a colegas e conhecidos que não aceitaria ser roubado, o que poderia gerar a suspeita de que ele teria reagido ao assalto.

“Pra mim ele nunca comentou nada disso. Já me falaram sobre esse fato, mas não sei de onde saiu e ninguém nunca me disse algo como ‘o teu pai falou pra mim’. Então, ficou um ‘disse-me-disse’”, comenta o filho Álvaro. O acusado terminou indiciado por latrocínio consumado. O procedimento assinado pelo delegado Marcelo Chiara Teixeira foi remetido ao Poder Judiciário em 7 de janeiro de 2011.

O desfecho

O Ministério Público (MP) ofereceu denúncia contra o acusado, que foi aceita pela 1ª Vara Criminal, onde correu o processo. Ao final da fase de instrução, o MP pediu a condenação.

Já a Defensoria Pública, que atuou na defesa do jovem de 19 anos, solicitou a absolvição dele por insuficiência de provas, ou o afastamento da agravante da reincidência, com base no princípio non bis in idem (de que uma pessoa não pode ser julgada mais do que uma vez pela prática do mesmo crime).

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Na sentença, assinada pelo juiz Gerson Luiz Petry em 28 de novembro de 2011, o réu foi absolvido de todas as acusações. Segundo Petry relatou no despacho, não havia provas convincentes, inequívocas, de que de fato houve um crime. Aplica-se nesse caso o princípio do in dubio pro reo, jurisprudência da presunção da inocência em casos de dúvidas (por exemplo, insuficiência de provas), que favorece o réu.

Diante da decisão, foi expedido imediatamente o alvará de soltura para o acusado, que encontrava-se preso preventivamente desde a ocorrência. Essa absolvição não foi o ponto final na sequência de envolvimento em crimes do indivíduo, que hoje tem 33 anos. Desde quando era menor de idade, ele registra 43 ocorrências em sua ficha policial. Seu primeiro apontamento foi em 30 de junho de 2004, por dano, em Santa Cruz, ainda como adolescente infrator.

O último aconteceu há dois meses, em 23 de novembro de 2024, quando esteve envolvido em um caso de tráfico de drogas em Rio Pardo. Ao longo de 20 anos, foi acusado de crimes que vão desde ameaça, furto qualificado, furto a residência e furto em veículo até lesão corporal, tortura e roubo a ônibus.
Atualmente, ele está em liberdade. Seu nome está sendo mantido em sigilo pelas autoridades policiais.

Nota pessoal

Esta é a minha última reportagem como jornalista da Gazeta do Sul, e precisava cumprir a promessa feita ao meu amigo Álvaro Assmann, que pediu já faz alguns anos para eu contar o caso de seu pai. Embora existam indícios, acredito que nunca saberemos com certeza se seu Alvá de fato foi assaltado, ou sofreu algum tipo de mal súbito que causou sua trágica morte. Mas muito mais do que trazer a ocorrência à tona nessa pesquisa, relembrar o fato faz gerar uma reflexão sobre a legislação e os benefícios concedidos para envolvidos em crime graves, que podem ocasionar – em condutas intencionais ou não – desfechos trágicos como no caso em questão.

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